terça-feira, 18 de setembro de 2012




MANIFESTAÇÃO E MUDANÇA

Se queres que os portugueses se mexam, vai-lhes aos víveres”. Não sei bem quem é o autor desta frase. Há quem diga que foi escrita por Eça de Queirós – e é bem possível. Muito nos faz palrar ou falar, pouco nos move. Mas quando se trata de defender o nosso rendimento, não hesitamos. E fazemos bem – embora façamos pouco. Muito pouco.
Raramente participo em manifestações. Mesmo quando concordo com as motivações que levam os meus compatriotas a desfilar pela rua. Não tenho feitio nem paciência para ajuntamentos e, além disso, julgo que são mais eficazes outras estratégias ardilosas de exposição da opinião colectiva ou da indignação de uma comunidade ou de um grupo profissional. Tal não significa, contudo, que rejeite ou reprove esta forma de luta – desde que seja expressão de uma ânsia de justiça social, em prol da dignidade da pessoa humana. Quando tal acontece (e nem sempre acontece…), emociono-me, mesmo à distância.
Os portugueses vêm manifestando de muitas e variadas formas o seu repúdio contra as medidas “de austeridade” postas em prática por este governo, impulsionado pelas organizações internacionais que nos emprestaram dinheiro para que o Estado cumprisse as suas obrigações, nomeadamente o pagamento de salários e de pensões. Não têm feito mal. É até proveitoso interna e externamente, pois assim se sublinha que a estratégia não pode ser aplicada “custe o que custar” e que há outras vias – mais equilibradas e mais dignificantes – para chegar ao mesmo lugar. Temo, contudo, que estes episódios de comoção colectiva não passem de explosões de alma sem consequências na mudança de vida e de mentalidade, de actos de rebeldia que não chegam a uma verdadeira epifania da liberdade.
Infelizmente, se circularmos pela internet e por outros espaços de discussão aberta, chegamos à conclusão de que as palavras do escritor espanhol Miguel de Unamuno, escritas há um século, continuam actuais, infelizmente. Uma boa parte dos portugueses é submissa “até quando se rebela. […] Têm a cólera do veado ou do carneiro, que os leva a actos de violência frenética. Quando o ovino se irrita, arremete contra o primeiro que encontra, e depois tudo fica como dantes. Por aí se explica o regicídio e as suas consequências. Rebeldia, sim; independência, não. Aqui, como na Galiza, pode florescer o anarquismo, mas não o sentimento de verdadeira liberdade. E a anarquia é servidão.
Acredito e acreditarei na justiça das manifestações surgidas e a surgir, se elas forem expressão de independência de espírito e de um olhar poliédrico sobre os erros que nos trouxeram até aqui. Passos Coelho e o seu governo merecem palavras indignadas sempre que não tomarem decisões certas e patrióticas, mas igualmente devem ser alvo da nossa voz exaltada Sócrates e os seus auxiliares no regabofe dos últimos anos, os cidadãos que se deixaram deslumbrar por autarcas e governantes fazedores de obra a todo o custo, os portugueses que nunca hesitaram em pedir “um jeitinho” (e são tantos), os nossos compatriotas que corromperam e foram corrompidos, aqueles para quem não há vida além do subsídio, quantos têm contribuído para o desemprego por actos e por omissões, os agentes que têm transformado a justiça em injustiça, a União Europeia que engulosou meio-mundo com dinheiro fácil “a fundo perdido” e pagou para não se produzir, etc., etc.. Tirando uma curta faixa de jovens e de crianças, todos somos um pouco ou muito culpados… Na encruzilhada em que estamos, uma manifestação tem de ser um acto de protesto, mas também um momento de catarse, de contrição e de propósito de mudança.
Uma pancada nos olhos faz ver”, como afirmava uma frase inscrita num armazém de Cacilhas? Fará ver se abrirmos os olhos e virmos quem e o que nos bateu.
Há, no entanto, algo que nos devemos recusar a aceitar. Custe o que custar. São os ataques à dignidade humana, expressos no desemprego injustificado, nos salários indignos, nos horários de trabalho iníquos, nas políticas anti-familiares, nos ardis que visam estupidificar os cidadãos, na erosão do direito à saúde, à educação e à cultura, no esvaziamento calculado do interior, nas estratégias promotoras do êxodo e da emigração. Contra eles, devemos lutar por todas as vias, sem tréguas, sem hesitações. Esta tarefa árdua merece a manifestação das nossas convicções, do nosso empenho e do nosso trabalho.
Ruy Ventura

sexta-feira, 14 de setembro de 2012



QUATRO PERGUNTAS


         Li há pouco tempo um texto que é oportuno partilhar. A tradução é minha, dado que o original foi escrito num castelhano do século XVI:
         Que se pode comprar com este dinheiro que desejamos? Será coisa valiosa? Será coisa durável? Queremo-lo para quê? Negro descanso se procura, que tão caro custa. Muitas vezes se procura com ele o inferno e se compra fogo perdurável e penas sem fim. Se todos o atirassem à terra, sem dele querer saber, que concertado andaria o mundo, sem canseiras! Com que amizade nos trataríamos todos se acabasse o desejo de honrarias e dinheiro. Tenho para mim que tudo se remediaria.
         Parece ofensivo falar deste modo, ir buscar um texto como este, nos tempos que fogem (já não correm, fogem). Parece falta de respeito por aqueles que, nestes dias, passam fome e muito mais – ou, pelo menos, vivem apertados nos seus cada vez mais esqueléticos orçamentos familiares. E, no entanto, as quatro perguntas sobre o dinheiro martelam no cérebro: – Que se pode comprar com ele? – Serão coisas com real valor? – Serão duráveis? – Para que o queremos? (Será bom meditarmos nelas.)
         No parágrafo transcrito, repare-se, não se discutem as facilidades concedidas pelo uso do dinheiro como meio simbólico nas transacções comerciais – e muito menos se põe em causa o direito de cada um ter uma retribuição justa pelo seu trabalho desempenhado com zelo e competência. Põe em causa, sim, a colocação do dinheiro no centro da existência humana, destruindo a capacidade de os membros da nossa espécie se moverem em direcção à verdadeira vida, isto é, em direcção a uma vivência espiritualmente superior (uma super-vivência ou sobre-vivência).
         Sei bem que é loucura falar disto. A televisão, os concursos estúpidos e/ou estupidificantes, a revistas cor-de-rosa, a inveja e a cobiça – tão habilmente manipulados pelo “marketing” empresarial, em várias décadas de bombardeamento e lavagem ao cérebro – já destruíram na maior parte dos nossos semelhantes qualquer aspiração que vá além dos desejos de dinheiro (adquirido sem esforço), de honrarias (merecidas ou não), de sucesso social e financeiro, de um poder de compra que leve à aquisição de bens que nunca nos tornarão melhores seres humanos (mas, com frequência, nos põem à porta de instintos animalescos). Falar numa existência digna – em que da satisfação das necessidades básicas (na alimentação, na habitação, na locomoção, na saúde e na educação) se passe a uma vivência mais elevada – é falar em algo de bizarro!
         E, no entanto, todos precisamos dessa forma de vida. Talvez por não termos ainda tomado consciência de que a meta a alcançar se situa nesse lugar alto, andamos angustiados, às vezes desesperados, pois esta crise, sendo financeira e económica, constitui sobretudo um abanão que nos obriga a ver o engano em que caímos, em que fomos caindo – ou, melhor, o abismo para onde nos atiraram. Ao não queremos ver, fechamos os olhos e tornamo-nos vulneráveis, sujeitos a perecer frente a qualquer perigo. A maioria da humanidade deseja enriquecer por fora, quando precisa apenas do essencial e, depois dele, de um enriquecimento interior, de algo que preencha o vazio existencial que caracteriza a nossa sociedade.
         Há muitas receitas para lá chegar. Cada um terá a sua, terá de construí-la. A autora do parágrafo com que iniciei este texto propôs a sua. Chamou-se Teresa de Ahumada e é conhecida em todo o mundo como Santa Teresa de Jesus ou de Ávila. Dizem assim os seus versos:
         Nada te turve / Nada te espante / Tudo acontece / Deus não se muda / Com paciência / Tudo se alcança / Quem a Deus tem / Nada lhe falta / Só Deus basta.

Ruy Ventura

"Santa Teresa de Jesus", escultura em madeira do século XVIII (Museu Municipal de Portalegre)


quarta-feira, 5 de setembro de 2012




PÓRTICOS DO DESEMPREGO



Regressei há dias de férias. Por enquanto, ainda faço parte do grupo privilegiado cujas férias têm fim. (Há quem tenha “férias” intermináveis e não saiba o que fazer à vida…) Foi um mês de contenção, pois entre os trabalhadores deste país pertenço ao número daqueles que deixaram de ter ordenado dobrado no Verão. Não fosse a recente decisão do Tribunal Constitucional – e até pareceria que os únicos beneficiários do regabofe despesista dos últimos governos haviam sido os funcionários públicos, entre os quais orgulhosamente me incluo…
Dos poucos passeios que o orçamento familiar permitiu, trouxe na memória a rapidez com que agora se circula nas auto-estradas. É uma maravilha…, fatal, da nossa idade. Sem dinheiro para o combustível, poucos se aventuram a sair da toca, num tempo de enganos em que a “conjuntura internacional” é pretexto para aumentar desmesuradamente a gasolina e o gasóleo, mas já não serve para baixar os seus preços.
Nem só o preço do alimento fóssil aumentou, contudo, a velocidade de circulação nas vias rápidas. Agora temos sobre auto-estradas uns objectos metálicos novos e algo estranhos, chamados “pórticos”, que permitem a circulação vertiginosa, sem paragens para pagamento, sem a chatice da saudação a um portageiro. (Serão pórticos do paraíso ou do inferno?) Curiosamente, também nas portagens antigas o elemento humano está em vias de extinção. Aí temos ainda de parar, mas já não damos os “bons dias” a um simpático (ou antipático) cidadão. Temos de lidar, apenas, com uma maquineta que recolhe o carcanhol e agradece com uma voz metálica, gravada.
Não contesto a justiça do princípio do “utilizador-pagador” nas auto-estradas portuguesas, desde que existam vias alternativas onde se circule com segurança. Revolta-me contudo que o acréscimo de lucro das concessionárias não se traduza num retorno social justo, através da criação de um maior número de postos de trabalho. Pagaria a portagem com muito menor azedume se soubesse que esse dinheiro contribuiria para o emprego de um portageiro com família.
Nós, contudo, não estamos livres de culpas nesta substituição do homem pela máquina – com consequente aumento do desemprego –, pois deixamo-nos enganar pelos ardis de um capitalismo desumanizante e esclavagista, quando cedemos ao comodismo e à preguiça. Sempre que usamos uma máquina para a execução de uma tarefa que poderia ser feita por um semelhante nosso, com a devida remuneração, estamos a contribuir para o despedimento de trabalhadores úteis, em idade activa. Se compramos em lojas “on-line” estamos a fechar locais de comércio com rosto, se praticamos todas as operações bancárias no “multibanco” ou na “internet” estamos a despedir pessoas com que nos cruzamos todos os dias. São apenas dois exemplos.
O desemprego não é apenas um problema dos indivíduos afectados por uma rasteira da vida. É um terramoto social que, mais cedo ou mais tarde, provocará convulsões sociais seríssimas. Sempre que contribuímos para a substituição do homem pela máquina estamos a trabalhar ao lado daqueles que desejam a substituição de seres livres por seres escravizados (e, já agora, alienados por uma boca dose de trampa televisiva).

A DIFERENÇA



Sempre que estou na minha aldeia de Carreiras, situada a poucos quilómetros de Castelo de Vide e a curta distância da fronteira de Portugal com a Extremadura espanhola, aproveito para dar umas voltas por terras de contrabando, assegurando-me de que as diferenças entre povos dos dois lados são diminutas perante o muito que culturalmente nos une. Não vou lá fazer compras – e, se as faço, é por acaso e não por acto deliberado. Sou, aliás, uma pessoa pouco consumista – o que nestes tempos me vem dando jeito, embora a penúria em que vivemos me obrigue a uma selecção apertada do único bem que avidamente consumo: os livros (que não dispenso). Verdade seja dita que o aperto até tem tido aspectos positivos. Desde que a crise se instalou, muito menos lixo editorial tem entrado na minha casa.
Num dos pequenos passeios que dei nas férias de 2012, deparei-me com uma pequena cidade espanhola pejada de pequeno comércio. Pelas ruas, o chamado “comércio tradicional” – passada a hora da “siesta” – fervilhava de consumidores que, conversando, entravam e saíam das lojas, transportando sacos de compras. E nem sequer faziam distinção entre aquelas que têm um ar modernaço e as outras que, com modéstia, continuam a mostrar uma face que nos faz lembrar tempos passados.
O cenário contrário me assalta na minha cidade de Portalegre e noutras (muitas) localidades portuguesas. Aí, passo por “ruas de comércio” onde pouco mais resta do que o olhar deprimido e suplicante de comerciantes e empregados, fitando o nada e o vazio, ou seja, a ausência de clientes. As lojas das cidades lusas são muito diferentes das que abrem portas do outro lado da fronteira? Não me parece. E os preços? Também não… nem tanto.
Notei contudo uma diferença abissal entre as povoações. Enquanto na cidade espanhola não vi aberto ao público consumidor qualquer centro comercial ou hipermercado, por cá eles são presença constante e infestante. Rara é a terra portuguesa com mais de três ou quatro mil habitantes que não tem um ou mais. Houve até autarcas com traços de estupidez, de loucura ou de malvadez que aprovaram a construção de vários estabelecimentos de grande superfície, uns aos lado dos outros. Com convicção bacoca (ou não), justificaram a sua anuência com o argumento de que, assim, nasceria “desenvolvimento” nas suas terras. Esqueceram (ou não) que, deste modo, apenas promoviam a penúria e a desertificação no coração das suas cidades e na vida dos seus concidadãos – trazendo Golias para dentro da casa de Davides necessariamente mais fracos e sem instrumentos eficazes de combate. Junte-se a este acto a permissão para a abertura de três ou quatro lojas de quinquilharia chinesa e tivemos o veneno instalado e a morte anunciada.
E nós, portugueses, vamos na onda… Cada vez mais acéfalos, cada vez mais egoístas, cada vez mais palradores, cada vez mais mesquinhos, sem percebermos as consequências dos nossos actos, vamos gastando os últimos tostões nos hipermercados ou nas lojas onde se vendem sempre os mesmos artigos orientais, baratos mas de fancaria… Eleitores e eleitos, consumidores e comerciantes, todos somos portugueses e responsáveis, uns por omissão e outros por acção, pelo ponto a que chegou o nosso país.

quinta-feira, 28 de junho de 2012



UM MAU ESCRITOR TALENTOSO



Ao ver, há poucas semanas, um texto de José Saramago no enunciado da prova final de Língua Portuguesa de 6º ano, recordei um saboroso e muito vertical artigo do filósofo e poeta Paulo Tunhas sobre um ensaio de João Pedro George em torno dos livros de Margarida Rebelo Pinto (p. 43 do nº 14 da revista Atlântico). A dada altura, afirma (e com razão, a meu ver):
“[...] Cheguei à conclusão que Saramago é um mau escritor talentoso, uma espécie vulgar. Palavroso, moralista, sem ponta de ironia. Uma opinião, apesar de tudo, ligeiramente melhor do que aquela para a qual, na minha ignorância, eu tendia naturalmente. Leva-se suficientemente a sério para não se entediar a meio da escrita dos livros, e isso permite-lhe um certo élan, naturalmente interdito a espíritos mais voláteis ou simplesmente mais lúcidos.”
Como a memória tem coisas que ninguém entende, enquanto lia estas frases recordei uma crónica do crítico e ensaísta Fernando Venâncio, onde – delicada e ironicamente – punha a nu os espanholismos desnecessários que enxameiam as obras do romancista, não como recursos estilísticos, o que seria normal, mas como pés que resvalam para a poça, como descuidos que um bom revisor nunca deveria permitir.
Sobre o homem-Saramago reencontrei ainda um artigo de José do Carmo Francisco intitulado: “Será José Saramago um fotógrafo de Estaline? (Crónica para os olhos tristes de Maria Belmira)”, vindo a lume no nº 29 de suplemento Fanal do jornal O Distrito de Portalegre (22/11/2002):
“[...] O mesmo José Saramago que um dia recebeu um enormíssimo ramo de flores numa homenagem promovida por uma Câmara Municipal no Alentejo e não quis voltar para Lisboa sem primeiro passar pelo Lavre para entregar o ramo à tua mãe para que o destino final daquelas flores fosse a campa do teu irmão João, foi o mesmo que resolveu apagar o nome do teu pai, da tua mãe, da tua irmã e de várias muitas outras pessoas da primeira página do livro Levantado do Chão. E isto mesmo depois de ter assegurado por escrito e por extenso – Sem eles não teria sido escrito este livro.
[...] [Este texto] é no fundo um texto de descoberta, de revolta e de repúdio por uma situação de morte civil só comparável à acção dos fotógrafos de Estaline que faziam desaparecer das fotografias várias pessoas inconvenientes e que, só anos depois se viria a saber, não deveriam ter estado ao lado do ‘grande líder’. [...]
[...] [Isto] para ir lembrar o ano de 1976 quando tinhas apenas quinze anos de idade e um escritor quase desconhecido entrou pela porta da casa dos teus pais para escrever um livro (Levantado do Chão) e para, muitos anos depois, de modo totalmente inesperado e (para mim) injusto, vir fechar a primeira página desse livro a quem lhe tinha aberto as portas da sua casa e do seu coração.”
A pouco e pouco o pano vai caindo. E, não fossem influências de várias ordem – que nada têm que ver com a arte e a literatura, mas com manobras relacionadas com dinheiro e com jogos políticos e pessoais –, mais cairia ainda… Há cada vez mais homens e mulheres que concordam com as palavras do poeta polaco C. Milosz (galardoado justamente com o prémio Nobel). No momento em que Saramago recebia a distinção sueca, não teve papas na língua e quebrou o unanimismo acrítico, afirmando que o autor de Memorial do Convento não passava de “um escritor de segunda ordem”.  Fosse o grande escritor polaco português e chamar-lhe-ia, talvez, com Paulo Tunhas, “um mau escritor talentoso”. Eu encontraria outros adjectivos, mas aqueles que se apresentam são suficientes para qualificar quem viveu e quem escreveu naquele ser humano.
Ser famoso, como se deveria saber, é bem diferente de ser importante. E não basta receber o prémio que mais dinheiro oferece para se ser um escritor, um artista, inovador e um ser humano exemplar. Como diz um velho provérbio, nem tudo o que luz é oiro – e às vezes nem prata é.

Ruy Ventura

sexta-feira, 22 de junho de 2012



GENEROSIDADE


         Foi com sobressalto e desgosto que há poucas semanas me confrontei com o fecho de um dos meus santuários lisboetas, a “Barateira”. Levada pela malvada “crise” e por jogos que nem vale a pena qualificar, tão sujos são, este alfarrabista da nossa capital era, em simultâneo, um templo da leitura e uma câmara do tesouro – para quem tivesse a paciência e a persistência de demandar nas suas estantes as mais valiosas preciosidades que o homem foi escrevendo e editando. Era um lugar generoso. Pequenas quantias monetárias geravam, se o Espírito assim queria, momentos inesquecíveis de prazer e de elevação. 
         Sempre que posso, perco-me pelos alfarrabistas e por feiras de velharias, ao encontro de livros importantes, raros ou esquecidos pelo tempo. Tenho para mim que alguns livros antigos ou em segunda mão procuram os seus próprios donos. Não somos nós que vamos na sua demanda, são eles que esperam por nós – aguardando a nossa visita e a nossa atenção apaixonada.
         Tenho tido momentos felizes na minha paixão bibliófila. Entre os dias que recordarei até ao fim da minha existência, estão vários que foram felizes porque nas suas horas tive a honra de encontrar e poder levar para casa obras que (tenho a certeza) há muito me esperavam. Seria difícil listar todos os livros que consolaram os meus dias, todos esses momentos de encontro. A título de exemplo posso citar, contudo, o primeiro livro do poeta portalegrense Carlos Garcia de Castro, editado em 1955, que pertenceu ao enorme pintor surrealista Manuel D’ Assumpção, a primeira edição de Claridades do Sul, de Gomes Leal, ou a antologia do Prémio Almeida Garrett, publicada em 1957.
         Esta última colectânea é um livro exemplar por razões que passo a expor. Atribuído pelo Ateneu Comercial do Porto em 1954, só três anos mais tarde a antologia do Prémio Almeida Garrett viu a luz do dia. O júri foi constituído por nomes que dispensam apresentações: Afonso Duarte, João Gaspar Simões, Paulo Quintela e Vitorino Nemésio. Foram 103 as obras concorrentes. O galardão coube a uma obra de Miguel Torga.
Neste nome reside a mais importante dimensão desta colectânea. Por estranho que pareça, não integra um único poema do autor de Poemas Ibéricos, uma vez que a obra teve edição autónoma. Não foi paga, como seria de esperar, pelo Ateneu Comercial do Porto, que promovera o prémio. Foi paga pelo primeiro premiado que, tendo conhecimento da alta qualidade de algumas das obras que haviam sido preteridas em favor do seu livro, decidiu abdicar do valor monetário que lhe era devido para proporcionar aos seus colegas de letras (jovens ainda e inéditos em livro) as alegrias da publicação. (É caso para perguntar: quantos poetas “medalhados” do nosso tempo teriam hoje coragem para manifestarem uma tamanha generosidade?)
         A história terminaria aqui se os autores antologiados no livro que veio acolher-se à minha biblioteca fossem hoje ilustres desconhecidos. Acontece que, entre a vintena de poetas aí incluídos, constam alguns poetas hoje indispensáveis no edifício da Poesia Portuguesa Contemporânea. Entre eles, destacam-se Fernando Echevarría, Cristovam Pavia, António Gedeão e, além deles, Fernando Vieira, José Carlos Ary dos Santos (que autografa o livro) e alguns outros, com obra estimável.
         Estes autores não tinham, em 1954, qualquer livro publicado. Tivesse Miguel Torga guardado o dinheiro no bolso, banqueteando-se com ele, e qual teria sido o destino da obra destes escritores, cuja poesia hoje reconhecemos? 

A POESIA HUMILDE DE FÁBIO GOMES


         É sempre com muita alegria que encontro um poeta até então meu desconhecido, um daqueles criadores que colocou a sua vida ao serviço das palavras. Rejubilo quando descubro a autenticidade verbal e existencial de um Homem que, usando os recursos que tinha à sua disposição, tentou comunicar uma visão peculiar do Universo. Não me interessam as circunstâncias que rodearam o autor. Desejo apenas que os poemas sejam frutos saborosos e não imitações plásticas fabricadas por um versejador mais ou menos habilidoso; “versejadores há-os em qualquer parte: nos bancos das tabernas e nas academias, nas leivas de terra e nos jardins relvados, nos jogos florais e entre luxuosas encadernações...”, como escrevi num jornal em 2005.
         Dum verão vivido há uns anos, guardo a alegria de ter encontrado um poeta. Nunca conheceu em vida o contentamento de um livro publicado. Pertence ao grupo dos criadores de uma Poesia Humilde (próxima do húmus, da terra), a que João David Pinto-Correia chamou “tradicionalistas”, porque se socorrem dos instrumentos da tradição oral, comunicando através de uma linguagem simples, mas autêntica. Chamou-se (chama-se) Fábio Gomes e nasceu em Aljezur a 31 de Julho de 1911, tendo falecido em Lisboa no dia 5 de Junho de 1998. O volume que, postumamente, guarda a sua produção poética intitula-se Flores de Outono e foi editado, em boa hora, pela Junta de Freguesia da sua terra e lançado no passado mês de Agosto.
         É um autor modesto que nos escreve: “Não olhes para o poeta / Para saber se versa bem / Na cara dele não se vê / O valor que a rima tem // [...] // Às vezes escrevo com erros / Coisas que lembro da vida / Digo à pena os meus segredos / Escritos em letra tremida” (p. 180).
         Ligado à terra, exalta o valor de quem a torna fértil, comparando o seu trabalho com o de um verdadeiro Artista: “O artista cavador / Com as cores da natureza / Pinta quadros de valor / Com realismo e beleza // [...] // Lindos pomares em flor / Os trigais da cor do mel / As tintas foram suor / A enxada o seu pincel // Com a enxada na mão / Dando vida à sua tela / Tirando da terra o pão / Faz a sua obra mais bela” (p. 59).
         Fábio Gomes exprime com encantamento, com humor ou com mágoa, mas sempre com frontalidade, a sua visão do mundo, seja natural ou humano. Satiriza o “Carnaval” político, através de uma fábula em que um “chibato orgulhoso / Com a sua pêra imponente, / Pendura os óculos nos chifres / Foi eleito presidente!” (pp. 120 a 125). Manifesta desilusão, quando recorda os desmandos do pós-25 de Abril: “Estalou a revolução / Por todos tão desejada. / Eu sofri uma decepção / Vi a minha terra ocupada. // Agora com a ocupação / Sou um zero, não à direita, / Já não faço a sementeira / Nem sei nada da colheita.” (pp. 194/195). Nascido numa terra de gentes ligadas ao mar, personifica-o, para revelar os muitos dramas que guarda: “Numa noite tão serena / Chorava de dor o mar / Será que ele tinha pena / De tanta gente matar?...” (p. 88).
         Muitos dos poemas são autobiográficos, como costuma suceder com boa parte da poesia lírica, apesar das máscaras do fingimento. Sentimentos, emoções e memórias ascendem à superfície do texto, de forma aberta ou velada. Adaptando um velho provérbio à sua experiência, Fábio Gomes afirma: “Há os que vivem chorando / Levando a vida a cantar / Eu levo a vida cantando / Com o coração a chorar” (p. 200). Mostra-se então uma dor de existir que se reflecte na escrita (“O que tem a minha pena / Que de pena anda perdida / Será porque a minha pena / Tem pena da minha vida?” (p. 15)), vinda da consciência de um tempo que passa e não regressa: “O tempo passou por mim / Sempre a correr sem parar / E eu à espera do tempo / Não vi o tempo passar.” (p. 104).
         “Dizem que perto da morte / É só quando o Cisne canta. / Serei eu também assim / Que só agora no fim / Abri a minha garganta!? // [...] // Se estivesse em minha mão, / Como Cisne eu queria ser. / Mostrar a minha alegria / Cantando uma melodia / E depois de cantar, morrer.” (p. 26). A poesia, nascida no entardecer da vida, é para Fábio Gomes um canto de cisne – um canto de cisne que merece ser conhecido por quantos apreciam uma poesia humilde e, logo, autêntica.

quinta-feira, 24 de maio de 2012




BORGAS E BALDAS

         Faz agora um ano que me vi obrigado, por dever familiar, a assistir à “bênção das pastas” celebrada no relvado da Cidade Universitária de Lisboa pelo cardeal-patriarca D. José da Cruz Policarpo. Jurei que nunca mais lá porei os pés. Nem celebração, nem bênção, nem qualquer coisa definida me pareceu tal aglomeração da espécie humana. Missa terá sido, mas para poucos, pois noventa por cento virou-lhe as costas. Festa, talvez, na ingenuidade de quem deita foguetes antes de ter direito à alegria da concretização e de quem esquece, por momentos, que aquele dia não é um fim, mas um começo. Tive a certeza de que a maior parte dos assistentes preferiria estar no mesmo local, mas a assistir a um concerto de certo cantor brejeiro do norte de Portugal, enfrascando umas imperiais e fumando uns charros…
         Confrontando-me com este cenário, recordei com irónica nostalgia a letra de um "hino do estudante" que os alunos da Escola Superior de Educação de Portalegre costumam entoar: "Os pontos requerem estudo,/ mas tu não estás nessa onda,/ tu só queres é café, é café, é vadiagem.../ É vadiagem pela noite e muitas baldas pelo dia,/ o estudo aperta e o curso é uma utopia."
         Não sei se noutras instituições do Ensino Superior os estudantes costumam cantar pérolas deste quilate. Não tenho, contudo, grandes dúvidas ao afirmar que o "espírito académico" apresentado pela letra é comum a uma grande percentagem dos alunos das nossas universidades e institutos politécnicos.
         Vindos de um clima laxista que se instalou no sistema educativo português, muitos dos jovens que entram no Ensino Superior desejam apenas serem "estudantes", sem vontade alguma de estudarem. Sabe que o estudo é sinónimo de esforço e exigência – realidades a que não querem adaptar-se, vindos de doze anos de escolaridade em que podem ter "empinado" conteúdos, mas pouco trabalharam para terem um pensamento crítico e informado sobre o mundo que os rodeia.
         Chamar-me-ão pessimista – mas basta lermos com uma atenção mínima as estatísticas que por aí pululam para chegarmos a estas conclusões. Junto a esta leitura a experiência que guardo dos anos que leccionei no Ensino Superior, recheada de exemplos de alunos cujo único objectivo era a aquisição do "canudo" com o mínimo trabalho - pois à frente da aquisição de um conhecimento enraizado estava sempre uma outra meta: viver a "vida académica"... E qualquer pessoa conhecedora do significado desta expressão sabe quais são os seus sinónimos: "vadiagem pela noite e muitas baldas pelo dia", como diz a letra acima citada, quantas e quantas vezes com álcool (e outras substâncias) à mistura.
         Não tomo a nuvem por Juno. Sei que existem milhares de alunos nas nossas universidades e institutos que se esforçam por aprender e enriquecer os seus conhecimentos. De igual modo, o conhecimento que tenho de algumas instituições leva-me a dizer que as baldas e as borgas dos estudantes são apenas um elemento da face negra da sua existência; há que considerar também a contratação duvidosa de professores, a gestão clientelar de alguns departamentos na elaboração dos currículos dos cursos e na planificação pedagógica das disciplinas. Mas a realidade é o que é e basta conviver uns tempos numa dessas comunidades universitárias para observar comportamentos que confirmam quanto digo (e não sou o único a dizê-lo).
         Neste âmbito, nunca esquecerei a frase dita há alguns anos por uma amiga minha, portuguesa que então estudava na Universidade de Paris-Nanterre: "Mas esta gente anda na universidade para estudar ou para passar o tempo em bares, em discotecas, em concertos de música pimba, em desfiles e em carnavais?".

Ruy Ventura

terça-feira, 15 de maio de 2012



TERRA COM SOMBRA


         Se no princípio do Universo esteve – como creio – a aliança entre o Pensamento e Palavra, só pela Palavra e pelo Pensamento cresceremos no confronto e na aceitação do mistério que nos transcende e nos rodeia. Só com a ajuda da sabedoria nascida do Verbo (encarnado há cerca de dois mil anos) poderemos reconciliar-nos com o Mundo, com o Outro e, sobretudo, connosco – neste tempo tão complexo, de sociedade em crise, à procura de um novo paradigma civilizacional. Não interessa se a Sabedoria nos chega por palavras, por imagens, por sons, por movimentos ou pela contemplação do “jardim do mundo”. Vale a pena tão só aceitar, entender e praticar com humildade os seus atributos: “há nela um espírito inteligente e santo, / único, múltiplo e subtil, / ágil, penetrante e puro, / límpido, invulnerável, amigo do bem e perspicaz, / livre, benéfico e amigo dos homens, / estável, firme e sereno, / que tudo pode e tudo vê, / que penetra todos os espíritos, / os inteligentes, os puros e os mais subtis” (Sabedoria, 8: 22 – 23).
         Verdade seja dita que há também palavras que nos salvam ou que, pelo menos, nos consolam. Lembro, por exemplo, quanto me pacificou, há uns anos, a dedicatória inscrita por José António Falcão numa das suas mais belas obras (A a Z – Arte Sacra da Diocese de Beja, 2006): “Este livro é dedicado a todos os que, saindo do Alentejo, não o abandonaram”. Alentejano exilado por vontade alheia, na co-movente Península da Arrábida, tão simples frase teve a capacidade de cauterizar feridas ainda recentes de alguém que continuava a martelar a letra de um velho fado: “Abalei do Alentejo, / olhei para trás chorando. / Alentejo da minh’ alma, / tão longe me vais ficando”.
         Já tive oportunidade de manifestar a minha integral admiração pelo trabalho desenvolvido no Baixo Alentejo pelo Departamento do Património Histórico-Artístico da Diocese de Beja. Não vale a pena repetir razões, tantas elas são. É contudo, importante, sublinhar o seu exemplo clarividente, em áreas só aparentemente separadas da preservação e divulgação dos bens artísticos da Igreja Católica. Bastará recordarmos a sua abertura ao Outro e ao mundo poliédrico da Cultura contemporânea, a revitalização dos Caminhos de Sant’ Iago no sul de Portugal ou o Festival “Terras sem Sombra”, neste momento a decorrer na sua oitava edição. Mesmo no “exílio”, penso que todos os alentejanos se sentirão serenamente felizes ao verem a sua terra como palco de um evento musical com ecos espalhados pelo mundo fora.
         É belo o seu nome, “Terras Sem Sombra”. E ainda mais belo ao revelar, aos ouvidos de quem o saiba entender, a essência da espiritualidade do Alentejo – proposta ao Mundo. Para compreendermos esta “terra sem sombra”, tão minguada de gentes, é preciso meditar os dois primeiros versos da quadra que deu origem ao título: “O Alentejo não tem sombra, / senão a que vem do Céu.” Não tem sombra material. É quase um deserto (aquele deserto que tanto aproximou os homens de Deus, no confronto com o interior e o exterior do seu ser). Tem apenas a sombra “que vem do Céu” (como diriam os místicos islâmicos heterodoxos). Ou seja, o Alentejo possui a terra inteira dentro de si, porque toda a criação, aos olhos do crente, é uma “sombra de Deus”, uma manifestação da realidade divina. Abdicou – e transformou-se em rei de si próprio (como diria Fernando Pessoa por Ricardo Reis).
         Sem sombra divina, não teria alma. Por isso me permito afirmar que a música do espírito apresentada pelo Festival “Terras sem Sombra” revela, na ausência de matéria, uma outra sombra que é, no fundo, um símbolo da Vida, daquela que transcende a existência. Tem pois José António Falcão toda a autoridade para espicaçar os ouvintes do festival com um texto claro e perturbador na sua análise e nas suas propostas. Interpretando a espiritualidade alentejana como proposta e exemplo, afirma no programa do evento:
         “Se o ‘tempo dos guerreiros’ e o ‘tempo dos agricultores’ souberam reconhecer até que ponto a benevolência apaziguada e a violência extrema se podem cruzar na natureza, o ‘tempo dos mercadores’ entregá-la-ia a uma pilhagem sem precedentes, exacerbada pela industrialização , que conduz o planeta até à fronteiras do descalabro. […] Depois do caçador, do lavrador, do metalurgista, do comerciante, emerge cada vez com maior nitidez a imagem do cuidador de um jardim que, como arquétipo, se projecta sobre os quatro pilares da sustentabilidade: ambiente, economia, sociedade, cultura. […] Este jardineiro […] vislumbrado [por Charles Péguy] não será, afinal, o mesmo que apareceu a Maria Madalena, junto ao túmulo, após a Ressurreição […]?
         Ameaçado e em grande perigo, o planeta só salvará se os homens de boa vontade souberem interpretar “a sombra que vem do Céu” e cuidarem do “jardim do mundo” em paz e harmonia. É, para isso, necessário, acolhermos o mistério da Vida e percebermos que esse acolhimento só acontecerá se abrirmos no nosso interior o espaço necessário, entrevendo – como refere J. A. Falcão – “a essência criadora do nada”, tão próxima quando vivemos a boa, a bela e a verdadeira terra do nosso Alentejo.

Ruy Ventura

quarta-feira, 2 de maio de 2012




UM CRAVO SOBRE O ESTERCO

      
         Hoje resolvi reflectir sobre o 25 de Abril e das suas consequências. Entendi, contudo, que qualquer das minhas palavras sobre o assunto pouco valeria frente às frases de um democrata de esquerda, que conheceu o exílio e a perseguição da ditadura. Assim se expressa:   
         “Se alguém quisesse acusar os Portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril. / […] havia dois problemas […] a descolonização e a liquidação do antigo regime. / Quanto à descolonização, havia trunfos para a realizar em boa ordem e com vantagem para ambas as partes […]. / Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. […] / O outro problema era o da liquidação do regime deposto.
         […] impunha-se […] fazer o […] julgamento [do regime], determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. […] / […] o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial. […] / Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regime, como não se fez a descolonização. Uns homens substituíram outros, quando os mesmos não substituíram os mesmos […].
         […] falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas […] nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres do anterior, mais a vergonha da deserção. E com este começo tudo foi possível depois […]: […] vieram os contrabandistas […] e os falsificadores […] em lugares de confiança […]; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; […] veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de estabelecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio “honesto” de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco. / […] Portugal está hipotecado por esse débito moral enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se num futuro próximo, merecemo-las, moralmente. / Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente.”
         Estas palavras foram escritas em 1979 pelo historiador António José Saraiva. Poderiam ter sido escritas em 2012. Hipotecados financeira e moralmente, quantas vezes sem vergonha, continuamos a sofrer as consequências da irresponsabilidade, do materialismo e do oportunismo que nunca nos largaram nestes últimos 38 anos. Sofremos, mas somos responsáveis sempre que as nossas atitudes são indignas do heroísmo e da ética demonstrados pelos nossos antepassados em momentos luminosos da nossa História.

 Ruy Ventura

 Ruy Ventura