terça-feira, 28 de fevereiro de 2012



FRUTOS E SEMENTES DE D. MANUEL FALCÃO

       
         Faleceu há poucos dias D. Manuel Franco da Costa de Oliveira Falcão, bispo emérito da Diocese de Beja. Se, para muitos cristãos, o desaparecimento físico deste prelado é assunto que diz apenas respeito aos diocesanos do Baixo Alentejo, para quantos no nosso país costumam lançar um olhar atento sobre o mundo e sobre os homens que o habitam e melhoram a partida deste “pescador de homens” não os deixou indiferentes. No segundo mais extenso bispado português (e também no Patriarcado de Lisboa, onde foi bispo auxiliar), os méritos deste antigo engenheiro serão recordados de forma poliédrica, dada a importância do trabalho pastoral que desenvolveu. Entre os restantes portugueses, se a justiça não for completamente cega, deixará memória duradoura enquanto promotor pioneiro de uma prática consequente de conhecimento, salvaguarda e divulgação do património religioso nacional.
         Ao fundar, em 1984, o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, poucos anos depois de tomar posse plena desse território cristão, o panorama não era animador, para não dizer aterrador:
         […] Diversas igrejas jaziam ao abandono, devido ao desinteresse ou à míngua de recursos, enquanto outras eram alvo de intervenções pouco criteriosas que afectavam a integridade material e cultural tanto da arquitectura como dos bens móveis nela integrados. Em certas circunstâncias, ainda se procedia à venda de obras de arte existentes nas paróquias como uma forma de obtenção de fundos para a reparação do telhado ou para a aquisição de um órgão electrónico. Ao mesmo tempo, várias imagens seculares eram confiadas a ‘curiosos’ que as pseudo-restauravam com purpurinas e tintas plásticas ou partiam para reparações em oficinas de santeiros do Norte, voltando desfiguradas ou substituídas por réplicas. A questão dos furtos tornava-se também acutilante com a presença de antiquários e coleccionadores no terreno que aliciavam tanto os sacristães a venderem como os delinquentes locais a roubarem. E, com o pretexto do abandono, alguns serviços estatais e autárquicos começavam a promover a incorporação nas suas colecções de objectos que se sabia pertencerem à Igreja.”
         Estas palavras – saídas da mão de José António Falcão, director do Departamento então criado, onde se mantém até aos nossos dias – não descrevem, infelizmente, factos exclusivos de uma única região portuguesa. O quadro encontrado por D. Manuel correspondia ao que se podia observar um pouco por todo o país, mesmo em zonas a que nunca se poderia colar a etiqueta (cómoda) da “descristianização precoce”, como se tem feito em relação ao distrito de Beja. Como refere aquele historiador da arte no catálogo da exposição “Rosa Mystica – Nossa Senhora na Arte do Sul de Portugal”(Regensburg, 1999-2000), “Tal como sucedia em muitas outras áreas do país, a Igreja ainda não tinha despertado então – pelo menos no tocante a uma sensibilização alargada das comunidades – para a necessidade de defender os seus valores com todas as consequências que isso implicava.
         O bispo de Beja teve a coragem de pensar de maneira diferente. Tal atitude, movida por clarividência ousada, concretizou-se na acção de uma equipa formada sobretudo por leigos comprometidos, que desde aí tem sabido olhar para o património histórico e artístico religioso como um fenómeno teológico, filosófico, antropológico e sociológico abrangente e revelador. Pastor enraizado e conhecedor profundo das suas ovelhas e da história delas, revelando um entendimento inteiro da paisagem, do povoamento e das suas tradições espirituais, D. Manuel não se limitou a delegar competências, mas soube acompanhar e estimular a descoberta, a inventariação, a salvaguarda e a divulgação de múltiplas manifestações de um património material e imaterial que é muito mais do que um simples conjunto de “bens culturais”. Por detrás da sua acção directa e indirecta esteve a consciência de que a Memória e a Criação, concretizadas em História e Arte, não são apenas fenómenos humanos, ainda que superiores, mas manifestações de um devir e de uma Transcendência que nos leva a Deus. Nos seus fundamentos esteve ainda a assunção de que a Ética e a Estética não devem ser separadas nem na preservação do património histórico e artístico nem no acolhimento que é preciso dar às manifestações válidas da nossa contemporaneidade. Consciência e acção parecem ter sido as sementes lançadas à terra portuguesa por D. Manuel Franco Falcão – e que tão bons frutos têm dado na prática multiplicada e multiplicadora do Departamento por ele criado. O trabalho vem sendo reconhecido dentro e fora de portas – sinal de que não tem sido feito em vão.
         Nenhuma semente, contudo, se prolonga no tempo se não partilhar os seus genes. O trabalho do bispo de Beja poderia ter ficado confinado às (largas) fronteiras da sua diocese. Tal não parece ter acontecido. Embora lentamente, um pouco por todo o país as sementes vindas da antiga Pax Iulia começaram a dar origem a novas plantas. São ainda frágeis, é certo, mas o Espírito Santo não as deixará fenecer. Onde, antes, algumas Comissões de Arte Sacra mandavam esculturas a Braga, a Fátima ou à casa de “habilidosos” (e de lá vinham estrábicas, com estranhos e desajustados olhos de vidro, com cabeças novas, sem a policromia original; ou de lá não vinham, porque regressavam apenas em cópias nem sempre fiéis), há agora regulamentos de intervenção rigorosos – ainda que a sua aplicação plena se veja prejudicada pela extensão territorial e pela falta de acolhimento de leigos inteligentes, conhecedores e comprometidos. Onde, antes, se demoliam igrejas seculares ou se deitava para o lixo (ou para as mãos de compradores de velharias e antiguidades) peças únicas só porque não caíam no goto de Comissões Fabriqueiras, de Irmandades, de beatas ou de párocos, há agora uma sensibilidade acrescida e, a pouco e pouco, mais atenta e respeitadora.
         Será ainda pouco – mas Roma e Pavia não se fizeram num dia. O exemplo de D. Manuel não terá sido a única semente (lembro, por exemplo, o trabalho meritório que tem desenvolvido o Secretariado para os Bens Culturais da Igreja), mas não seremos justos se não dissermos que – por caminhos tortos ou direitos – o bom trabalho de Beja, visível até fora de portas, serviu de adubo ou de água que fez rebentar vontades adormecidas, consciências acomodadas. Seja como for, teve um efeito de bola de neve, que a emulação, em muitos casos, estimulou.
         O filósofo francês Henri Bergson defendeu sempre que a memória não consiste num regresso ao passado, mas na entrada de uma herança infinita no presente de cada um de nós, tornando-o livre das necessidades da existência e elevando-o até uma vida projectada no futuro, enquanto Esperança. D. Manuel Franco Falcão terá percebido a importância desta doutrina, concretizando-a numa obra exemplar. Isso lhe devemos e deveremos. Isso lhe deve e deverá Portugal.

Ruy Ventura

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

http://liberdade.olx.com.br/vacas-leiteiras-girolando-iid-87907085


BAIRRISTAS E FORASTEIROS

         Lembro-me como se fosse hoje. Corria o ano de 1992. Escrevia eu no jornal Notícias de Elvas, hoje extinto, tanto quanto sei. Para moderar um debate promovido por esse periódico fôra convidada uma personalidade qualificada. Feita a introdução necessária ao tema, logo um cavalheiro se levantou da assistência, pedindo a palavra. Quando todos esperávamos uma intervenção suscitadora, o dito cidadão ofereceu a seguinte posta de pescada: “Com tanta gente boa que há em Elvas, logo havia de vir um gajo de fora dizer das suas!” Assim mesmo. Com a delicadeza de um elefante numa loja de loiça (perdoem-me os paquidermes...).
         Há gente assim. Não olha para a qualidade dos seres humanos, para a sua experiência e verticalidade (que consideram, quiçá, incómoda), para as suas capacidades ou para os seus atributos – mas apenas para a certidão de nascimento (verdadeira ou suposta). Tanto quanto sei, tal documento não constitui atestado fiável nem de inteligência nem de competência. Certo bairrismo tem, contudo, olhares estranhos sobre a realidade. Há pessoas, por exemplo, que preferem vinho carrascão, só porque nasceu dumas vides enfezadas lá da terra, e rejeitam uma pinga de estalo, só porque a cepa rebentou em território que não conseguem alcançar com a sua fraca vista. Esquecem quase sempre um princípio universal: podemos nascer em qualquer canto, até num comboio ou numa avioneta; a “pátria” é, contudo, um assunto do coração, crescendo da adesão espiritual a um lugar, tantas vezes diferente daquele em que lançámos o primeiro grito.
         O bairrismo vale a pena quando defende com abertura de espírito e frontalidade crítica as mais profundas aspirações duma colectividade (o seu verdadeiro desenvolvimento mental, cultural, cívico e económico). É manifestação espúria duma sociedade fechada e ignorante sempre que revela um bacoco e míope provincianismo, embebido em estupidez. Geralmente resulta na promoção da mediocridade local, só porque é local. Recusa a crítica legítima, pois tem a mania da perseguição – e qualquer belisco é uma ofensa de morte. É veículo de reprodução social na promoção do imobilismo e, frequentemente, do caciquismo nas suas expressões mais perigosas e/ou descaradas. (Tal fenómeno não deve ser confundido, contudo, com o calculismo político, social e económico puro e duro. Este, sendo igualmente estúpido, é sobretudo maldoso. São conhecidos os casos de figurões, figurinhas e figurantes que enjeitam e perseguem todos quantos ameacem a sua sede de protagonismo e de poder. Esses – sem qualquer bairrismo – não hesitam prejudicar as suas terras e os seus conterrâneos, se vislumbrarem nessa atitude benefícios para si e para a sua pandilha ou prejuízos para adversários que, quantas vezes, não passam de moinhos de vento, tão reais quanto os que atacavam D. Quixote de la Mancha…)
         Exemplos contrários também existem. Há habitantes de aldeias, de vilas, de cidades e de países que vão dando bordoada na qualidade dos seus naturais, mesmo que seja notória e reconhecida fora de portas. Sobretudo quando esses conterrâneos vêm das camadas desfavorecidas, pois ameaçam a pirâmide social… Não hesitam, contudo, em bajular quem venha de fora. Mesmo que se trate de um burlão ou de um vigarista, ou tão-só de um chico-esperto que habilmente manipula a miopia local, quantas vezes confundida com a hospitalidade.
         Por estas e por outras é que as vacas empeçam umas nas outras – diria um bom pastor alentejano. Ou seja, por estas e por outras é que Portugal e muitas das suas localidades chegaram à beleza com se apresentam no nosso desgraçado tempo.
         Moral da crónica: nem forasteiros nem indígenas. Para nada nos deve interessar o bilhete de identidade de uma cidadã ou de um cidadão, desde que mostre verticalidade, qualidade e competência. Igual desprezo devemos votar à naturalidade de quem se apresenta ou demonstra medíocre ou incapaz. Prezemos quanto de bom nasça nas nossas terras, mas com o mesmo amor acarinhemos os frutos saborosos vindos do resto do mundo. Foi Fernando Pessoa quem aconselhou um forte amor ao nosso quintal, não por ser nosso nem por ser quintal, mas por existir com qualidade no universo.
         Com Marco Aurélio, defendo que “pouco importa viver aqui ou ali se em toda a parte tivermos a ideia que este mundo é uma cidade”. Ninguém vive plenamente sem raízes e sem uma profunda religação ao espaço que ocupa no mundo e à sua memória integral (positiva ou negativa). Mas não deixo de concordar com Pascal: “Não é do espaço que eu devo esperar a minha dignidade, mas do acerto do meu pensamento. (...) pelo espaço, o universo abarca-me e submerge-me como um ponto. Pelo pensamento, abarco-o eu.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Fotografia de Nuno de Matos Duarte
Portugal, Dezembro de 2011
Fonte: http://www.facebook.com/#!/photo.php?fbid=2283043653822&set=a.1177856464833.20968.1780772122&type=1&theater

 

A DEPRESSÃO NACIONAL


Sou um leitor compulsivo, embora com bico doce. Ao contrário de alguns amigos e confrades meus, que se preocupam sobretudo com a escrita das suas “coisas”, ao longo dos anos tenho-me preocupado sobretudo em ler, ler bastante – e nunca achei, até hoje, que tenha lido demais. Como diria o escritor argentino Jorge Luis Borges, a única angústia de quem tem uma biblioteca é saber que nunca poderá lê-la por inteiro. Um dos hábitos que mantenho desde a adolescência consiste na transcrição, em cadernos pautados de humilde factura, de excertos que me vão estimulando nos textos lidos. É uma forma discreta de lhes manifestar a minha amizade. Há dias, folheando um desses “Diários de Leituras”, veio ao meu encontro um trecho de Georges Bernanos, escritor católico francês, admirável na sua verticalidade. No seu romance intitulado Diário de Um Pároco de Aldeia escreve a dado passo:
“[…] o Estado principia por mostrar boa cara diante dos infelizes. Toma conta dos garotos, cuida dos estropiados, lava as camisas e faz a sopa dos mendigos, esfrega os escarradores dos velhos senis, mas tudo isto sem deixar de olhar para o relógio e perguntar a si mesmo se irá ter tempo para se ocupar dos seus próprios negócios.”
Acolhi-o como foco luminoso numa época como aquela que atravessamos no mundo, mas sobretudo em Portugal. Ajudou-me a confirmar a convicção de que o fundamento principal da depressão crónica em que mergulharam os portugueses está num forte sentimento de abandono. O Estado português, entidade abstracta tornada física em todos quantos lhe dão corpo e movimento, tem abandonado os cidadãos deste país em boa parte da sua história. Tivemos momentos de esperança, mas sempre que avistámos raios de luz – naquelas parcelas de tempo em que a democracia se aproximava da realidade –, a inércia, a hipocrisia e a corrupção foram fazendo o seu trabalho. Nomeadamente, colocando (em lugares-chave da gestão pública e da administração) pessoas cuja competência se concretizou e concretiza apenas no momento em que os seus interesses e os da sua clientela política e social foram e são satisfeitos, institucionalizando (usando a justiça e a fiscalidade, por exemplo) oligarquias corruptas que, em vários períodos, transformaram o governo numa autêntica plutocracia.
É difícil não se pensar assim quando se é cidadão português e não se tem a barriga cheia. Existem, em Portugal, exemplos de boa conduta, de exigência social, de devoção abnegada ao bem comum? Claro que sim. Não tranquilizam, contudo, os portugueses que ainda têm honra (essa palavra infelizmente em desuso). Quem poderá estar descansado quando tem sobre a cabeça a ameaça de um Estado abusador e negligente? A fiscalidade sobrecarrega a classe média para aliviar os poderosos e aquietar os ociosos. Por todo o lado é promovida gente sem currículo nem competência, mas com mal-disfarçada vontade de “subir”. O mérito é desvalorizado, premiando-se antes a obediência à iniquidade. Várias escolas e muitos pais tentam camuflar o insucesso educativo. Os direitos e ansiedades dos cidadãos são desprezados. A gestão do território em termos ambientais, urbanísticos, económicos e culturais facilita o tráfico de influências. Há empresários que impunemente exploram o trabalho com chantagens e com atrasos no pagamento dos merecidos salários, que fecham ou mudam a localização das suas empresas. Sectores estratégicos da vida nacional são colocados em mãos privadas ou estrangeiras. O governo tenta diminuir a despesa pública indo pelas vias mais fáceis, mas menos justas, evitando afrontar os que verdadeiramente são poder em Portugal.
Os exemplos são múltiplos e variados. Claro que existem muito boas práticas nalguns locais – mas chegará tão curto lenço para cobrir a larga face de tão grande negrume? Além disso, a nossa miopia e a nossa falta de memória obriga-nos a fugir de um verdadeiro exame de consciência como o diabo da cruz. Preferimos antes aceitar passivamente a manipulação televisiva ou internética e esquecer quanto fomos e somos enganados pela mania das grandezas, pelas seduções do consumismo, pela inveja e pela ambição desmedida.
O autor da letra do hino nacional escreveu em 1890: “Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal...” Deveríamos dirigir-nos assim aos que nos governam neste momento difícil, exigindo-lhes um saneamento profundo do Estado português e exigindo a nós próprios uma rigorosa moralização da vivência social, no âmbito de uma ética democrática fundada na responsabilidade. Os canhões contra os quais devemos marchar são hoje a irresponsabilidade, a mediocridade, a chantagem, a incompetência e a corrupção. E só com autocrítica, coragem e frontalidade os podemos enfrentar. Pergunto-me tantas vezes: teriam fugido os vendilhões do Templo de Jerusalém se Jesus Cristo lhes tivesse falado com brandura?
Será talvez verdade: “uma vez que os costumes estão estabelecidos e os preconceitos enraizados, é uma empresa perigosa e vã querer reformá-los – o povo não pode mesmo suportar que toquem nos seus males para os destruir, tal como os doentes estúpidos e sem coragem, que estremecem à vista do médico”, como escreveu Jean-Jacques Rousseau. Serão também verdadeiras as palavras, proféticas e assustadoras, de Raul Brandão (escritas, vejam só, há quase cem anos): “O rico explora o desgraçado, já não há homem nenhum que não se sinta afrontado e que no íntimo não deseje que isto desabe… Só falta um passo. O que falta é exteriorizar a nossa alma. Essa sociedade anticristã, que aí está, não merece ser poupada: não só não crê em Deus como só crê na matéria e no gozo.” Mas, como diz o nosso povo, o povo humilde que salvou sempre este país, a esperança é a última virtude a morrer.