MANIFESTAÇÃO E MUDANÇA
“Se queres que os
portugueses se mexam, vai-lhes aos víveres”. Não sei bem quem é o autor
desta frase. Há quem diga que foi escrita por Eça de Queirós – e é bem
possível. Muito nos faz palrar ou falar, pouco nos move. Mas quando se trata de
defender o nosso rendimento, não hesitamos. E fazemos bem – embora façamos
pouco. Muito pouco.
Raramente participo em manifestações. Mesmo quando concordo
com as motivações que levam os meus compatriotas a desfilar pela rua. Não tenho
feitio nem paciência para ajuntamentos e, além disso, julgo que são mais
eficazes outras estratégias ardilosas de exposição da opinião colectiva ou da
indignação de uma comunidade ou de um grupo profissional. Tal não significa,
contudo, que rejeite ou reprove esta forma de luta – desde que seja expressão
de uma ânsia de justiça social, em prol da dignidade da pessoa humana. Quando
tal acontece (e nem sempre acontece…), emociono-me, mesmo à distância.
Os portugueses vêm manifestando de muitas e variadas formas o
seu repúdio contra as medidas “de
austeridade” postas em prática por este governo, impulsionado pelas
organizações internacionais que nos emprestaram dinheiro para que o Estado
cumprisse as suas obrigações, nomeadamente o pagamento de salários e de
pensões. Não têm feito mal. É até proveitoso interna e externamente, pois assim
se sublinha que a estratégia não pode ser aplicada “custe o que custar” e que há outras vias – mais equilibradas e mais
dignificantes – para chegar ao mesmo lugar. Temo, contudo, que estes episódios
de comoção colectiva não passem de explosões de alma sem consequências na
mudança de vida e de mentalidade, de actos de rebeldia que não chegam a uma
verdadeira epifania da liberdade.
Infelizmente, se circularmos pela internet e por outros espaços
de discussão aberta, chegamos à conclusão de que as palavras do escritor
espanhol Miguel de Unamuno, escritas há um século, continuam actuais,
infelizmente. Uma boa parte dos portugueses é submissa “até quando se rebela. […] Têm a cólera do veado ou do carneiro, que os
leva a actos de violência frenética. Quando o ovino se irrita, arremete contra
o primeiro que encontra, e depois tudo fica como dantes. Por aí se explica o
regicídio e as suas consequências. Rebeldia, sim; independência, não. Aqui,
como na Galiza, pode florescer o anarquismo, mas não o sentimento de verdadeira
liberdade. E a anarquia é servidão.”
Acredito e acreditarei na justiça das manifestações surgidas
e a surgir, se elas forem expressão de independência de espírito e de um olhar
poliédrico sobre os erros que nos trouxeram até aqui. Passos Coelho e o seu
governo merecem palavras indignadas sempre que não tomarem decisões certas e
patrióticas, mas igualmente devem ser alvo da nossa voz exaltada Sócrates e os
seus auxiliares no regabofe dos últimos anos, os cidadãos que se deixaram
deslumbrar por autarcas e governantes fazedores de obra a todo o custo, os
portugueses que nunca hesitaram em pedir “um
jeitinho” (e são tantos), os nossos compatriotas que corromperam e foram
corrompidos, aqueles para quem não há vida além do subsídio, quantos têm
contribuído para o desemprego por actos e por omissões, os agentes que têm
transformado a justiça em injustiça, a União Europeia que engulosou meio-mundo
com dinheiro fácil “a fundo perdido”
e pagou para não se produzir, etc., etc.. Tirando uma curta faixa de jovens e de
crianças, todos somos um pouco ou muito culpados… Na encruzilhada em que
estamos, uma manifestação tem de ser um acto de protesto, mas também um momento
de catarse, de contrição e de propósito de mudança.
“Uma pancada nos olhos
faz ver”, como afirmava uma frase inscrita num armazém de Cacilhas? Fará
ver se abrirmos os olhos e virmos quem e o que nos bateu.
Há, no entanto, algo que nos devemos recusar a aceitar. Custe
o que custar. São os ataques à dignidade humana, expressos no desemprego
injustificado, nos salários indignos, nos horários de trabalho iníquos, nas
políticas anti-familiares, nos ardis que visam estupidificar os cidadãos, na
erosão do direito à saúde, à educação e à cultura, no esvaziamento calculado do
interior, nas estratégias promotoras do êxodo e da emigração. Contra eles,
devemos lutar por todas as vias, sem tréguas, sem hesitações. Esta tarefa árdua
merece a manifestação das nossas convicções, do nosso empenho e do nosso
trabalho.
Ruy Ventura
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