terça-feira, 13 de março de 2012



A ARTE DE DESERTIFICAR

Há cerca de uma dezena de anos participei em Castelo de Vide numa tertúlia que teve como pretexto uma obra de José Luís Peixoto, publicada havia pouco tempo. Em dado ponto da conversa, o conteúdo do romance levou os presentes a reflectirem sobre o estado do interior, em geral, e do Alentejo em particular. Estávamos nós tecendo considerações, quando um cidadão lisboeta, com ar de hippie fora de prazo, resolveu afirmar com sobranceria: “Eu cá gosto muito do Alentejo porque é deserto... tem pouca gente... Assim é que é bom!” Todos entendemos que não se referia ao deserto simbólico dos místicos. Com visível incómodo, olhámos uns para os outros. O silêncio imperou. Até que um dos presentes respondeu ao indivíduo: “O senhor diz isso porque é um gajo bem amanhado. Tem dinheiro suficiente para ir à capital a bons médicos, para encontrar naquelas bandas o que aqui falta. Mas, e quem cá mora e de cá não pode sair?” O forasteiro nada retorquiu – nem poderia retorquir. E o colóquio informal continuou, ignorando-o, sobre as causas do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de que o alentejano se mata, se sacrifica, quando perde a dignidade. (E quanta dignidade lhe têm retirado, uns que “gostam muito do Alentejo” mas só sabem espezinhar quem por lá habita, outros que, sendo alentejanos, gostam de fomentar um viver social pequenino e dependente, o melhor meio para exercerem o seu caciquismo político, económico, social e/ou cultural.)
De vez em quando vêm-me à memória os dilates do hippie fora de prazo, sobretudo quando me confronto com algumas medidas que os últimos governos têm vindo a pôr em prática. Quem as vê de longe – e nenhuma estima ou compreensão o liga às distantes terras da “província”, às suas necessidades e à sua cultura – pode até vislumbrá-las como benéficas, redutoras da despesa do Estado e fomentadoras do desenvolvimento tecnológico. (Encerrar escolas é bom, segundo afirmam, pois colocará todos os alunos num só edifício com condições para atingir o seu sucesso. Obrigar homens e mulheres a deslocarem-se, em plena noite, a um centro de saúde fora da sua área de residência pode até ser positivo, pois terão cuidados médicos que na sua terra não teriam. Obrigar as elvenses, por exemplo, a terem os seus filhos na maternidade de Badajoz é porreiro, pois assim ficarão com a cidadania espanhola, que os seus pais já vão adoptando quando fazem nas localidades extremenhas. Extinguir freguesias e concelhos rurais até está bem visto – pois que falta faz uma junta ou uma câmara municipal à porta, se a podem ter a trinta ou quarenta quilómetros de distância...) Quem conhece o interior português e lhe tem amor sabe que essas medidas são uma machadada fatal na dignidade de quem lá vive. Concretizadas ou pensadas pelos mais recentes gestores da coisa pública, mas idealizadas por decisores que são peças da sinistra engrenagem da desumanização, são um veneno que aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas.
Claro que nada disto interessa a quem vê as aldeias apenas como fontes de rendimento. Gente dessa (indígena ou forasteira) tem pena quando uma aldeia começa a ser muito habitada, pois nesse momento as casitas baratas passarão a ter um justo preço. Não se preocupa quando uma localidade deixa de ser autarquia, quando perde o médico, o posto de correios, a farmácia ou a escola, quando os centros de saúde deixam de oferecer atendimento permanente, quando as maternidades passam a ser ambulâncias paradas na berma da estrada... As pequenas terras são, para essa turma de patos-bravos, pavilhões de caça ou campos de férias, lugares de passagem transformados em não-lugares, em locais sem vida, cenários para turista ver ou áreas de serviço.
Os reis dos primeiros tempos da nossa história pelo menos legislavam favorecendo a fixação das populações. Os nossos governantes fizeram e fazem o contrário. Primeiro esqueceram os habitantes do interior, não pondo em prática quaisquer estratégias que contrariassem o êxodo, adubando antes os caciques locais (que, diligentemente, pela sua passividade, pela sua mediocridade e pelo seu fechamento, obrigaram à fuga da população residente, sobretudo a mais jovem). Agora, retiram aos portugueses que restam no interior condições mínimas de dignidade – para que o esvaziamento se complete e mais facilmente cerquem a sua coutada com arame farpado, real ou simbólico. Não tenhamos dúvidas: para muitos cidadãos sem raízes nem moralidade (que vêem na “província” apenas uma terra de cafres e de broncos), a atracção do mundo rural será tanto maior quanto mais rapidamente se transformar num deserto. Então poderão reinar – e, talvez, passear com ligeireza a sua cáfila.

Ruy Ventura

segunda-feira, 5 de março de 2012

O OURO DO TEJO

Não existem fronteiras que separem as duas margens de um rio. Existem margens. Margens só – e água pelo meio. Podemos encontrar símbolos e colá-los à matéria – mas esta continuará sendo apenas o que é e sempre foi: rocha e terra, rasgadas e esculpidas por uma corrente.
Todos os rios são, assim, internacionais, mesmo quando sulcam um só país. Internacionais porque sem nacionalidade (ou com todas as nacionalidades). Por mais que os Homens desejem o contrário, nas suas águas não se espelham línguas nem dialectos – e muito menos bandeiras ou linhas administrativas. A sua gramática é outra. Mesmo quando os seres humanos os transformaram em fronteiras, ditas (erradamente) “naturais”.
Creio que tudo isto entenderam os criadores do Parque Natural do Tejo Internacional. Não é possível separar o que a geografia une. Não se trata apenas de uma questão cultural. Os pontos de contacto e de continuidade são imensos – mas ainda assim insuficientes para o estabelecimento de pontes invisíveis e indissolúveis. A água não separa, une. As margens são metades de um mundo que a corrente bravia, precedida por fortes movimentos tectónicos, afastou, mas não separou. Não por acaso, quando um rei português do século XII doou aos Templários a enorme “herdade de Açafa”, soube incluir nela territórios de ambas as margens do Tejo, tanto do sul da actual Beira Baixa, quanto do norte do Alentejo e do que seriam terras de Cedillo, Herrera e Valencia de Alcántara.
A paisagem é a mesma, sulcada pela espinha dorsal do ocidente peninsular. Essa coluna vertebral chama-se Tejo, um rio hoje amansado pelas barragens que tentam canalizar toda a sua energia (tradicionalmente temível) para as necessidades humanas. Quem se digne subir a um dos seus miradouros, verá de um e de outro lado das águas uma sucessão de montes agrestes, em que o cinzento-acastanhado das rochas se mistura com a vegetação resistente às inclemências do Verão e do Inverno, à escassa pluviosidade, aos devastadores incêndios que por vezes a atacam. Sobreiros, azinheiras, oliveiras, em simbiose com uma infinidade de espécies integráveis na flora de tipo mediterrânico, podem ser olhadas como indícios de uma abundante fauna – também ela adaptada aos rigores do clima e da geografia.
Entre os habitantes que o tempo colocou nessa região – ou que a ela aportaram subindo o Tejo, provenientes da Fenícia ou doutras partes –, não podemos deixar de realçar uma população humana que, sendo escassa, merece a nossa admiração pela sua capacidade de resistência ao meio e, até, às investidas de quantos procuraram diminuí-la ao longo de séculos ou milénios. Houve sempre barcas a ligar a sua dispersão. Foi essa necessidade de intensificar o contacto que, na época romana, levou esses povos a construírem uma das mais impressionantes obras da engenharia, a ponte de Alcántara, que – segundo consta numa lápide – existirá “enquanto o mundo durar” (crendo nós que a frase se referirá mais ao contacto entre Homens e menos às pedras talhadas que um dia se dispuseram em ponte).
Andar pelas terras de Herrera e de Cedillo, por exemplo, é encontrar costumes, cultos e monumentos que reproduzem, surpreendentemente (ou não), os existentes noutras margens do Tejo, na Beira e no Alentejo. Os monumentos megalíticos de um e de outro lado não podem ser entendidos, como viu o arqueólogo Jorge de Oliveira, sem uma visão de conjunto que os compreenda enquanto manifestações físicas de uma única cultura milenar. Não se podem interpretar rituais cíclicos como a “a fogueira do Menino Jesus”, o Entrudo enfarinhado ou a “quinta-feira de compadres”, sem conhecermos o que acontece do outro lado da fronteira. O mesmo acontece com o culto de São Sebastião em terras de Herrera de Alcántara, tão ligado nas terras portuguesas da Raia às ordens militares.
As margens do rio Tejo foram até há poucas décadas locais de exploração de ouro. Já em épocas muito antigas assim era. Hoje o ouro é outro. Está à nossa espera – na água, na terra, nas rochas, na flora e na fauna, nos seres humanos (e na sua memória) que convivem e conviveram com tudo isto. Saibamos nós descobrir e trabalhar, em filigrana espiritual, todo este minério – produzindo riqueza, uma riqueza sempre interior, mesmo quando se expressa em fenómenos visíveis e materiais.

Ruy Ventura
Ponte de Alcántara (Extremadura espanhola)