sexta-feira, 7 de junho de 2013

 
 
A ELEIÇÃO, A DIVISÃO E O CAMINHO

A eleição e as intervenções do papa Francisco têm trazido ao de cima, em certos espaços de discussão religiosa, o quanto neste momento os católicos estão divididos. A alegria geral pela sua elevação à cátedra de bispo de Roma e pelas suas palavras (cada frase/gesto seu é uma proposta de metanóia) não se espelha no interior de toda a Igreja, por mais que alguns tentem disfarçar. Não falo de uma acepção restrita da palavra "Igreja", que normalmente só se refere aos clérigos; falo dos crentes, dos chamados "leigos".
Temos, dum lado, um grupo serôdio de "ultramontanos" entrincheirados, que, muitas vezes, lembra aquele que deu origem, por interesse ou fanatismo, à Inquisição e às suas piores atrocidades. Do
outro, é visível um arquipélago complexo de activistas das mais diversas causas ou de "relativistas" que tenta moldar a doutrina aos seus interesses particulares, sem olhar à mensagem de Cristo ou chegando mesmo a deturpá-la conscientemente. Há ainda uma maioria, assim creio, que tenta viver o melhor que pode a benevolência contida na mensagem evangélica, apesar das suas insuficiências, normais em seres humanos imperfeitos. Basta viajar pelos diversos blogues, por várias páginas na "internet" e por grupos de discussão no "facebook" para constatar isto mesmo.
Na minha opinião de cristão católico (ou seja, de cristão que procura a universalidade), o caminho mais digno será sempre este: diálogo incessante tendo em vista a união na diferença das várias igrejas cristãs; diálogo com as outras religiões e tradições (incluindo, por mais que não se queira, a maçonaria teísta), no respeito por aquilo em que cada um acredita, tendo em vista a construção de propostas comuns para o bem da humanidade; diálogo também com os ateus (que não comerão os católicos, de certeza...) e terão muitas palavras a dizer e imensas propostas a formular. Tal caminho não necessita de levar ao apagamento da matriz da fé e da palavra de cada um. Mas também nunca poderá impedir a correcção aberta ou a denúncia de teorias ou práticas que não respeitem a bondade, a beleza e a justiça. Será sempre esse o caminho para a paz.
A leitura do belo diálogo entre o papa Francisco e um rabino argentino apresenta uma das formas possíveis desta demanda. Está lá tudo ou quase tudo.
Infelizmente há, contudo, católicos (que, decerto, não serão cristãos nem crentes) que são como certo "santo" com língua de prata, que nunca teve problemas de consciência quando insultava o beato João XXIII, chamando-lhe "velho a cheirar a vacas". Cheira-me que, murmurando, brindarão Jorge Mario Bergoglio com mimos deste cariz...
Será sempre bom repetir: temos de sair da indiferença, rejeitar o fechamento e a hostilidade, deixar para trás a tolerância e construir uma relação entre religiões, entre seres humanos, baseada na benevolência.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Beleza em tempos de guerra
 

[…] alguém duvidará, ainda, de que estamos em guerra?” – A pergunta obriga-nos a suspender o passo e a enfrentar a barbárie. Vêm-nos à memória imagens que gostaríamos de esquecer: crianças que não se concentram na escola porque têm fome; velhos que vão definhando porque não têm dinheiro para aviar os medicamentos (enquanto outros gastam centenas de euros numa noite só); homens e mulheres catando no lixo dos supermercados alimentos fora de prazo para matar a fome (e ao lado o luxo, indiferente, exibindo-se); a frieza dos governantes pugnando pela redução do orçamento público da educação e da saúde (nunca dizendo que os filhos estudam em colégios privados e consultam médicos nos melhores hospitais particulares); e muitas, muitas outras…
De repente, ao lado do aviso de guerra, ouço as palavras de María Zambrano, lidas há pouco no seu livro A Agonia da Europa: “Ser cristão é também não se resignar, agarrar-se à esperança no impossível”. As duas juntas, constatação e exaltação, enrijam e preparam para a luta: – uma luta de paz, mas de firmeza, contra o logro, contra um mundo centrado nesse demónio chamado dinheiro, contra aqueles que dissolvem deliberadamente a dignidade humana por actos ou omissões.
A frase com que iniciei este texto é de José António Falcão. Faz parte do texto de abertura do programa do festival “Terras sem Sombra”. Creio que, ao escrevê-lo, também deve lhe ter passado pela mente, consciente ou inconscientemente, a definição da filósofa espanhola. Todo este evento, que se realiza pela nona vez, se estrutura sob o signo da Beleza, não dispensando contudo na sua proposta sólida uma Verdade ecuménica que não se impõe e uma Bondade que nos interpela:
A Verdade e o Bem têm sido apontados insistentemente, no último século, como via privilegiada para Deus. Porém, a Beleza não o é menos. Hoje vemo-nos órfãos dela e desejamo-la ardentemente. Alguém duvidará de que saber descobri-la e partilhá-la representa uma prova suprema de amor?” (p. 10)
Descobrir – “inventar” no melhor sentido etimológico – e partilhar a Beleza será a tarefa suprema dos seres humanos, porque ao mesmo tempo, discretamente, estará oferecendo também a Verdade e o Bem, escadas para o Divino, que se concretiza na mais sólida e inviolável dignidade do Homem e da Natureza. Passar da “tolerância”, quase sempre indiferente e relativista, à “benevolência”, ao desejo activo do bem comum – como dizia e bem o papa emérito Bento XVI. E sabemos hoje o quanto nós, seres humanos, dependemos de uma natureza amada e preservada, o quanto a nossa existência depende dessa devoção:
[…] Arte, cultura, espiritualidade e conservação da natureza são as armas de uma resiliência necessária em tempos de escolhas. Ser faber ou sapiens, eis o que está em jogo.” (p. 28)
Por isso precisamos tanto de “ração de combate” nestes tempos de guerra fria, surda e suja, porque a “ração” – as palavras não mentem e ainda menos as suas raízes – será sempre uma “razão” de combate, desse “bom combate”, como dizia São Paulo, pela imanência e pela transcendência.
Um conjunto de concertos ajudará pouco nestes tempos, dirão. Asseguro-vos contudo que ouvir, no vazio (espaço aberto dentro de nós), Machaut, Escobar, Mozart, Pergolesi, Haydn, Ligeti ou Schönberg, enquanto se contemplam belas esculturas e pinturas que tornam visível um Espírito que nos consola, será encontrar a nascente da esperança, essa que nenhum de nós, crente ou descrente, poderá perder, como já referiu o papa Francisco, que decerto não esqueceu o Amor (Charitas) como centro de tudo.
Volto às palavras de José António Falcão, à sua habitual sabedoria (espero que um dia decida recolher em livro essas suas reflexões):
[…] Eis o momento em que tudo depende da capacidade de julgar, com lucidez e serenidade. Nestas circunstâncias – alguém duvidará, ainda, de que estamos em guerra? –, um módico pecúlio de coisas fundamentais pode fazer a diferença. O soldado sabe que a ração de combate lhe permite sobreviver, ganhar forças para fazer frente aos obstáculos do inimigo e prosseguir até à fonte que saciará a sua sede e ao vergel que fartará a sua fome. […]” (p. 15)
Neste tempo de guerra não podemos faltar à Beleza, pois sem ela nunca a Verdade e o Bem constituirão por si só o triângulo sagrado. Com firmeza e lembrança, temos de recordar sem rancor quem foram os judas desta peleja, mas também os nossos “excessos de confiança” e a nossa “complacência face aos corruptos (e aos seus corruptores)” (p. 22). Com alegria e esperança, “sem queixumes”, temos de arregaçar as mangas porque são necessários “sinais de confiança”. Este marco da cultura no Alentejo “assume-se como um deles”. (Talvez um dia se alargue além da diocese de Beja, assim queiram os alentejanos dos distritos de Évora e de Portalegre…) Temos de dar outro uso à frase tristemente célebre de um governante: custe o que custar, não podemos acabar, por falta de água, à beira da nascente. Não fomos castigados como Tântalo, apesar das nossas faltas. Saibamos pois descobrir a beleza que as “Terras Sem Sombra” nos oferecem neste tempo de guerra para que, depois, reconciliados connosco e com o mundo, possamos descobri-la dentro de nós e à nossa volta.

Ruy Ventura

quinta-feira, 2 de maio de 2013



TROIKA

Leio um escrito russo do século XIX. Em nota de rodapé, o bom tradutor informa que "troika" é "um trenó puxado por três cavalgaduras". Esboço um sorriso, meio amargo. Penso que o veículo é Portugal, a deslizar por um terreno muito escorregadio, gelado, numa guerra fria, surda. E as "três cavalgaduras"? Não acredito que sejam boas bestas. São bestas de carga, submissas perante os seus donos (os donos do dinheiro que "nunca hesitarão pôr um povo a passar fome se isso for necessário para ganhar mais uns biliões" (ex-funcionário do maior banco americano dixit!)), sobranceiras face àqueles que, enregelados, têm o azar de viver o pesadelo de não conseguir sair do trenó, de não conseguir salvar o trenó, de se verem puxados pelas "cavalgaduras" até ao abismo, até ao "inferno", o mundo inferior, dos mortos. Sobranceiras e capazes de coices mortais.
Lembra-me mestre Gil Vicente: "mais vale burro que nos carregue do que cavalo que nos derrube". Sim... Mas os mansos asnos estão em vias de extinção, dizem.
Restam as bestas, três, como as três cabeças de Cérbero, o cão feroz que guarda o Hades, que vê com os olhos fechados e dorme com os olhos abertos. Recordo Dante, a placa sobre a porta do Inferno: "Vós que aqui entrais, deixai toda a esperança..."
O mais alto Mestre avisa-me contudo: "Sêde simples como as pombas, astutos como as serpentes... Olhai os lírios do campo..."
Páro para pensar. Que culpa tem a palavra?, que culpa tem o veículo?, que culpa têm as boas cavalgaduras se os escreventes com língua-de-pau resolveram compará-los às sinistras figuras que nos governam dentro e fora de fronteiras?

Ruy Ventura 
(in "Etymologias")

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013




PALAVRAS QUE PERTURBAM

por Ruy Ventura

“[…] quando o Filho do Homem voltar,
encontrará a fé sobre a terra?”
Jesus de Nazaré (Lucas, 18: 8)

         No Natal de 1969 um jovem professor de Teologia, com pouco mais de quarenta anos, proferiu na Emissora Radiofónica de Hessis uma conferência que, hoje, podemos considerar profética. A prelecção intitulava-se “Que aspecto será o da Igreja no ano 2000?” e, a dado passo, afirmava:
         Da crise de hoje […] nascerá amanhã uma Igreja que terá perdido muito. Tornar-se-á mais pequena, terá em larga medida de recomeçar tudo de novo. Essa Igreja não vai poder encher muitos dos edifícios que construiu quando a conjuntura era favorável. Com a perda do número de seguidores, perderá também muitos dos seus privilégios na sociedade. Terá de se apresentar de modo muito mais forte do que até aqui, como uma comunidade de voluntariado, a que só se pode aceder por decisão. Enquanto pequena sociedade, vai exigir de modo muito mais marcante a iniciativa dos seus membros. […] Será uma Igreja interiorizada […]. Não terá uma vida fácil. Porque este processo de cristalização e clarificação custar-lhe-á alguns bons colaboradores. Torná-la-á pobre e fará dela uma Igreja dos pequeninos. O processo será tanto mais difícil por a Igreja ter de eliminar tanto a tacanhez sectária como a bravata daqueles que só querem fazer a sua vontade. […] preparam[-se] tempos muito difíceis para a Igreja. § A autêntica crise mal começou. Deve-se contar com grandes abalos […]”
         A autêntica crise mal começara… É possível que o autor destes trechos, retirados de um livro intitulado “Fé e Futuro”, tenha pensado na sua afirmação quando, em Abril de 2005, lhe coube dirigir em Roma a Via Sacra de Sexta-Feira Santa. Meditando a partir da terceira queda de Jesus Cristo a caminho do Calvário, proferiu palavras duras, cortantes:
         Tantas vezes celebramos apenas nós próprios, sem nos darmos conta sequer d’ Ele! Quantas vezes se contorce e abusa da sua Palavra! Quão pouca fé existe em tantas teorias, quantas palavras vazias! Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba e auto-suficiência. […] Senhor, muitas vezes a vossa Igreja parece-nos uma barca que está para afundar, uma barca que mete água por todos os lados. […] O vestido e o rosto tão sujos da vossa Igreja horrorizam-nos. Mas somos nós mesmos que os sujamos! Somos nós mesmos que Vos traímos sempre, depois de todas as nossas grandes palavras, os nossos grandes gestos. […]
         O homem que tal disse era Joseph Ratzinger. Dias depois sucederia a João Paulo II como papa e escolheria, significativamente, o nome de Bento. O pastor que pensou e difundiu o diagnóstico que nos perturba só poderia confirmá-lo e aprofundá-lo em 2013, dias depois de anunciar “urbi et orbi” a sua renúncia ao sólio pontifício por razões que, totalmente, só ele e Deus conhecerão. Na homilia de Quarta-Feira de Cinzas sublinharia quão importante é “o testemunho de fé e de vida cristã de cada um de nós e das nossas comunidades para manifestar o rosto da Igreja; rosto este que, às vezes, fica deturpado.” E explicou: “Penso de modo particular nas culpas contra a unidade da Igreja, nas divisões no corpo eclesial. Viver a Quaresma numa comunhão eclesial mais intensa e palpável, superando individualismos e rivalidades, é um sinal humilde e precioso para aqueles que estão longe da fé ou são indiferentes.
         Todas estas palavras, dirão, têm apenas interesse para os católicos que, agora, esperam a eleição do seu novo líder religioso, depois da decisão inesperada e raríssima de um alemão que decidiu abdicar do lugar em que fora investido, dizem, pelo Espírito Santo. Assim não creio. Se o nosso objectivo é trabalharmos para que se diluam – como propôs Bento XVI – as relações de tolerância mútua em benefício da construção de uma comunidade de seres benevolentes, ou seja, se queremos transformar uma sociedade de indiferença entre os seres num mundo centrado no bem de cada ser humano, estas palavras não podem deixar-nos indiferentes – se olharmos para quanto nos rodeia de uma perspectiva sagrada e sacralizadora, seja qual for a nossa postura perante Deus.
         Perturbado pelas palavras que transcrevi e por quanto têm de verdadeiro neste mundo em que tudo vale e tem o mesmo valor, dei por mim a pensar num dos célebres frescos de Giotto di Bondone, existentes na Basílica de São Francisco, em Assis. Do lado direito, temos um papa (Inocêncio III, 1198-1216) que sonha. Do outro, a representação do sonho: São Francisco impede a derrocada de uma catedral, ou seja, da Igreja por inteiro. Eram tempos conturbados aqueles… como os nossos. A santidade de Francisco impediu a queda. E agora?
         Tentando aliviar a perturbação, peguei num livrinho do filósofo russo Nicolai Berdiaeff, cristão ortodoxo defensor da unidade das Igrejas, perseguido pelos comunistas, leitor e admirador das obras do nosso Teixeira de Pascoaes. Nesse opúsculo intitulado “Da Dignidade do Cristianismo e da Indignidade dos Cristãos” reproduz uma história que me dá que pensar sempre que a leio. Saiu da mão de Boccacio, escritor medieval italiano.
         Um cristão tentava há muito converter um amigo judeu. O baptismo do israelita estava à porta. Quis contudo, antes de dar o passo definitivo, ir a Roma apreciar a conduta da Cúria e do pontífice. O católico, que tanto trabalhara, viu as suas expectativas irem por água abaixo.         O judeu partiu e constatou a hipocrisia, a depravação, a corrupção, a cupidez que reinavam nessa época na corte do Papa entre o clero romano. Voltou – e o seu amigo cristão logo lhe perguntou com inquietação que impressão trazia de Roma. A resposta, com um sentido muito profundo, foi das mais inesperadas: se a fé cristã nunca foi abalada por todos os escândalos e abominações que havia visto em Roma e se, apesar de tudo, ainda se fortificava, ela deveria ser a verdadeira fé. O israelita tornou-se assim cristão.
         É preciso separar, nestes tempos de “fulanização”, a exigente doutrina nascida nas e das palavras de Jesus Cristo do modo impuro, fanático, interesseiro e/ou depravado com que muitos cristãos a vivem, distinguir o Cristianismo (nas suas diferentes vias) da hipocrisia anticristã daqueles que apontam o argueiro mas escondem a tranca que têm sobre a cabeça. Sabendo que os cristãos vivem em direcção a uma meta de perfeição, sem serem seres perfeitos, é preciso denunciar aqueles que, diabolicamente talvez, querem uma Igreja tacanha de “puros” e fecham portas quem nem eles próprios sabem abrir. Mas, ao mesmo tempo, devemos impedir o crescimento de um Cristianismo de trazer por casa, à la carte, sem criação, sem altitude, sem mistério, sem espiritualidade, sem sacralidade e sem compaixão.
         Berdiaeff sublinha: “Não é culpa de Cristo se a sua verdade não se cumpre nem se realiza na vida. Cristo não é responsável se os Seus mandamentos são espezinhados.” O próximo papa, com as suas insuficiências e com humildade, deve contribuir, como Francisco de Assis, para que o Cristianismo se mantenha de pé, como proposta de elevação e salvação do ser humano. É a sua tarefa – e a tarefa de todos os cristãos e homens de boa vontade.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013


MAL DE CANGA, PIOR DE ARADO

         Estávamos sentados à mesa de um restaurante, de um belo restaurante que escolhera para sala de refeições um daqueles pátios floridos que só existem na Andaluzia. Falávamos sobre a influência da cultura semita na Península Ibérica. Às tantas, Ahmad resolveu perguntar-me palavras que, do árabe, haviam ficado na nossa língua. Dei-lhe vários exemplos, entre eles “alcofa”. Riu-se. E, no seu inglês cultivado nas margens do Nilo, explicou-me: “É o nome que damos no Cairo aos seguidores da Irmandade Muçulmana: têm orelhas grandes como asas, mas não ouvem nada, só as arengas dos fanáticos que os chefiam. São muito perigosos. Sei do que falo. Apesar de ser filho de uma figura importante nos meios religiosos egípcios, já por duas vezes me ameaçaram de morte, por ter escrito algo de inconveniente no jornal onde trabalho.” E explicou mais: “Mubarak era um monstro, um assassino. Mas quem lhe sucede foi feito num molde muito pior.
        Quantas asneiras não se têm feito por esse mundo fora devido à impaciência… Querendo livrar-se, o mais rapidamente possível, de facínoras e de corruptos, quantos povos não têm instalado no poder figuras sinistras ou fanáticas que mais não fazem do que acentuar o sofrimento dos seres humanos que os rodeiam.
         O feudalismo da monarquia russa não foi substituído por setenta e tal anos de comunismo sem escrúpulos e sem ética? A ditadura de Baptista, em Cuba, não foi apagada pela tirania “revolucionária” dos irmãos Castro? À imperfeita monarquia constitucional não sucedeu em Portugal um regime republicano fanático, caótico e caceteiro? A balbúrdia anti-democrática dessa Primeira República portuguesa não foi “salva” por uma Ditadura Militar – aplaudida por tantos compatriotas nossos – que abriu as portas a quatro décadas de autocracia salazarista? O luminoso 25 de Abril de 1974 não ia trazendo uma “democracia popular”… estalinista? Um certo Pinto de Sousa, de má memória, não foi removido, sem que o soubéssemos, por um trio de criados da agiotagem internacional que vê como seu principal obstáculo a Constituição da nossa pátria?
         É importante, nestes nossos tempos conturbados, que não sejamos como os “alcofas” egípcios: com orelhas grandes (quiçá, com línguas demasiado compridas), mas sem capacidade de audição e de atenção. Quem esteja atento, já assistiu decerto nalguns lugares públicos, físicos e virtuais, à ressurreição de frases de António de Oliveira Salazar e de outros “santos” com o mesmo quilate, embora doutros quadrantes político-sociais, a prometerem o “ressurgimento” e outras acções purificadoras e, decerto, cegas e fanáticas. Sejamos simples como as pombas e astutos como as serpentes. Não nos deixemos enganar pelo canto das sereias, por mais belas e atraentes que sejam, pois a sua face verdadeira é monstruosa. A História já provou desse veneno várias vezes.
 
         Sejamos com a velha da história tradicional. Um dia encontrou-se com o seu rei, sem que o conhecesse (estava disfarçado). Procurava o monarca ouvir a opinião verdadeira do seu povo sobre o seu governo (ainda não existiam sondagens nem assessores naquele tempo…). “Que diz a senhora do rei?”, perguntou-lhe. “Deus o guarde por muito tempo!”, retorquiu a idosa sem demora. “Como pode dizer isso?... Dizem que ele é mau…”, inquiriu o governante, desconfiado. “Olhe, eu já sou velha. Já conheci o avô deste. Era mau como tudo. Pedimos a Deus que morresse e Ele fez-nos a vontade. Veio o pai dele. Pior ainda, como o pecado… Rezámos outra vez e fomos atendidos. Veio o rei de agora. Muito, muito pior que os dois anteriores. Portanto, Deus o conserve… Quanto vier outro, não vamos ficar melhor.
 
         A narrativa não conta que consequência teve esta resposta. Ensina-nos contudo que a impaciência nem sempre é boa conselheira. A democracia representativa tem decerto muitos defeitos. Alguns insanáveis. Mas, na sua imperfeição, é ainda a forma de governo mais equilibrada que o homem até hoje pôde inventar.
Ruy Ventura