sexta-feira, 27 de abril de 2012


TOPONÍMIA, ESPELHO DA SOCIEDADE

Desde meados do século XIX que a nomeação das ruas e de outros lugares tem sido utilizada para difundir ideais políticos, para afirmar os poderes vigentes ou para reproduzir a sociedade, os seus valores e as suas clivagens. Paralelamente, tem constituído uma maneira de homenagear quantos pugnaram por uma comunidade ou dignificaram a identidade local ou nacional. De um lado, temos o caciquismo, o imobilismo e a estratificação sociais, a propaganda a regimes e a políticas. Do outro, os valores universais da solidariedade, da doação e da dignificação do Homem, ao lado do interesse colectivo e dos laços de agregação identitária.

Não conhecemos qualquer aldeia, vila ou cidade que tenha passado ao lado deste modo de fabricar topónimos. Ao lado de valores incontestáveis da literatura e da arte, da doação aos outros, do desporto, da identidade nacional, da luta pela dignificação social da espécie humana e de marcos de inegável importância na História local, nacional e internacional, vemos por esse país fora a imposição de caciques e figurões locais, a homenagem a agentes económicos duvidosos e a propaganda aos mais diversos regimes e partidos, ao lado da apologia de atitudes, datas e figuras de que há muito nos deveríamos envergonhar. Em bastantes localidades chega-se ao esquecimento (verdadeiro ou fabricado) de figuras cimeiras e de efemérides importantes, substituídos pelos nomes de personalidades com relevo discutível ou até mesmo improvável.

Estamos ainda a tempo de remediar os erros do passado, assim haja vontade para tal.

Uma ideia exequível seria inaugurar por esse país fora um processo inédito de selecção dos topónimos a atribuir a novos arruamentos. Um processo realmente democrático: ouvir os cidadãos, as suas propostas, as suas opiniões. E deixar de ouvir apenas os membros das Comissões Municipais de Toponímia, cuja actividade muitas vezes se situa entre a passividade e a ignorância, nomeadamente quando autorizam a substituição em centros históricos da toponímia funcional e antiga (a única verdadeira), por homenagens quantas vezes contingentes ou ridículas.

Aliada a esta, outra medida para tornar completamente transparente este processo de "canonização civil" seria adoptar procedimentos similares aos da canonização religiosa: instituir um "advogado do diabo" que exigisse provas da relevância da personalidade a homenagear, sem as buscar apenas junto de sabichões, que apenas sabem orientar os seus interesses, ou junto daqueles que em vida, por esta ou por aquela razão de proximidade, dependeram do visado. As precauções são necessárias. A História já nos provou vezes suficientes que o ditado popular é verdadeiro: as aparências iludem e aquilo que parece ouro por vezes nem prata é!

Verdade seja dita que não concordo com o método de nomeação que, nos últimos 150 anos, tem multiplicado designações artificiais e arbitrárias por esse país fora. Tais nomes, por mais dignas que sejam as personalidades ou as datas, nunca serão topónimos, além das suas circunstâncias passageiras. Têm tanto valor quanto aqueles que lemos nas lápides dos cemitérios. Ao longo de muitos séculos a denominação dos lugares nasceu sempre da sua interpretação, da leitura das suas características, das suas evidências materiais ou sociais, permanentes ou prolongadas. Os nossos antepassados sempre o fizeram com sabedoria. Saibamos nós, hoje e no futuro, aprender com eles.



Ruy Ventura

quarta-feira, 18 de abril de 2012



ESCOLHER COM CORAGEM



Mais do que tudo é preciso ter a coragem de escolher. Dizem as velhas tradições que, perante um touro bravo, só há três caminhos: pegá-lo de caras, pegá-lo de cernelha ou fugir.
E a Educação neste país é não é rês mansa. Não por culpa, exclusiva, do Ministério, da sociedade, dos professores, dos sindicatos, dos pais, dos alunos. Por culpa de todos, não tanto por actos mas pela omissão de agir.
É mais cómodo fechar os olhos àqueles que desejam instrumentalizar a instituição educativa. A tutela, que nada faz para manietar aqueles que desejam o sucesso educativo a todo o custo, para o exibirem como troféu. Os sindicatos, que continuam a pôr à frente do que deveria ser a sua missão preconceitos ideológicos ou partidários. Os professores, que se aquietam perante a necessidade de agirem no sentido de impor a autoridade que ainda têm, que continuam a optar pelo espectáculo escolar e não pela promoção do conhecimento. Os pais (muitos, mas não todos, felizmente), que ainda não perceberam que a solução não está na facilidade mas na exigência. A sociedade, que continua a ver a Escola como bode expiatório e como caixote do lixo.
É preciso escolhermos todos de que lado queremos estar. Podemos fugir, é certo. Mas também podemos pegar o touro (de caras ou de cernelha) e melhorar um pouco este país.
O problema da Educação em Portugal não está nos cortes na despesa (ainda que injustos). O problema está no entretenimento, na ligeireza e no novo-riquismo que povoa muitos estabelecimentos, desmobilizando a melhor parte dos membros da comunidade educativa, afastando-os daquilo que é a sua missão: fazer crescer as crianças e jovens no conhecimento e na cidadania.
*
Ser professor, desde sempre, implicou resistência. Formatados para formatarem, os professores tiveram sempre de resistir para não serem transformados em meras ferramentas de sistemas sociais, políticos e económicos que os têm visto como correias de transmissão de moldes de ser, de estar e de fazer. Ora, educar consiste, sobretudo, em formar cidadãos para uma Cultura interventiva e para uma Cidadania activa, ou seja, em fazer crescer para o usufruto da participação na Democracia. Instruir e educar são patamares diferentes numa mesma ascensão civilizacional e cultural.
Nos difíceis dias que correm, o professor tem de pôr em prática a sua capacidade de resistência múltipla. Num período histórico em que várias formas de autoritarismo e de despotismo tentam regressar envolvidas por um capote atraente (televisivo, publicitário, legislativo, etc.), o docente tem de ser "simples como as pombas, mas astuto com as serpentes" (para citar de memória uma passagem do "Evangelho segundo Tomé"). Só assim conseguirá cumprir eficazmente a sua missão.
Para isso, terá de gerir prioridades (diluindo, se necessário, todas as tarefas supérfluas que lhe são impostas para o distrair do essencial) e criar uma segunda pele que lhe permita viver e enriquecer-se enquanto pessoa. Sem Vida e sem Riqueza nunca passará de molde plástico que, a pouco e pouco, apagará a dignidade dos seres humanos que lhe passam pelas mãos, impedindo-os de serem livres na crítica e na actuação cívica.


Ruy Ventura



quinta-feira, 12 de abril de 2012



FRUTOS DA ÁRVORE MEDITERRÂNICA

Sempre me fez espécie ouvir dizer, a alguns compatriotas nossos, que em Espanha se come mal. Nunca tal me aconteceu – e são já numerosas as incursões por esse país acolhedor. Em todas as localidades por onde tenho passado venho encontrando não só seres humanos calorosos e frontais, mas também sabores que me trazem à mente a civilização com raízes mediterrânicas que é a da nossa Península Ibérica.
Como esquecer a deliciosa morcela assada comida à sombra do mosteiro de Guadalupe, as excelentes migas saboreadas sob as arcadas de Plasencia, o arroz de lebre que (em Zorita ou Logrosán) me deu forças para continuar uma viagem, o doce de amora que adoçou um encontro de poetas em Yuste, as alcachofras a tortilha e o gaspacho degustados nas proximidades da catedral de Badajoz, o licor de bolota que nunca deixa a minha garrafeira, a reconfortante torrada à moda extremenha – com alho esfregado, tomate e finas tiras de presunto – com que iniciei um dia na casa do poeta e amigo Antonio Sáez Delgado ou, mais longe, um polvo bem temperado que degustei com a mulher da minha vida na Praça do Obradoiro, em Santiago de Compostela? São sabores que ficam, inesquecíveis na sua essência e no seu contexto de lembranças, sabedorias que nos foi dado conhecer pelo paladar e que, mais do que quaisquer outras facetas do verdadeiro corpo da Península Ibérica, se tornam logo irrepetíveis, imateriais.
Não sou de coleccionar nomes de restaurantes. Posso assegurar-vos de que a nenhuma das experiências gustativas antes enumeradas consigo juntar o nome comercial do estabelecimento onde tiveram lugar. Esse hábito, hoje muito em voga, cheira-me sempre à colagem infantil de cromos numa caderneta ou ao exibicionismo turístico de gente que tanto gosta de mostrar t-shirts compradas em viagens (reais ou imaginárias) a Cuba, ao Brasil ou às Canárias.
Importantes são os ingredientes a que as mãos e o cérebro de muitos homens e mulheres souberam dar sabedoria e arquitectura no gosto: sobretudo o azeite, o vinho e o pão, mas também as peças de caça, o bezerro, o cabrito e o borrego, o porco (bravo ou manso), as aves de capoeira, algum peixe do rio, o leite e o mel, as frutas silvestres ou do pomar, os legumes nascidos de uma terra exigente e sequiosa… Com estes elementos se confecciona tudo ou quase tudo na terra que nos une.
Se falássemos de música, poderíamos dizer que temos alguns temas básicos e muitíssimas variações. O arroz de coelho, as migas e o gaspacho, por exemplo, na minha aldeia de Carreiras, junto de Castelo de Vide, são feitos de outro modo… mas já o “cachafrito” tem uma grande semelhança com algum borrego frito comido em terras da Extremadura espanhola. Vale a pena relembrar? Estamos tão próximos que nem a gastronomia nos separa. Mediterrânicos de um e de outro lado, embora hoje ponhamos no prato uma enorme variedade de receitas, aprendemos todos a mesma lição milenar, somos todos frutos da mesma árvore genealógica.

Ruy Ventura

quarta-feira, 11 de abril de 2012


A CAL PARA CAIAR O UNIVERSO

         Agostinho da Silva entrou na minha vida tinha eu pouco mais de dezoito anos. Nunca o conheci pessoalmente, mas ao longo de ano e meio mantivemos alguma relação epistolar. Não eram cartas circunstanciais as que fui recebendo do filósofo, mas textos que de uma forma concentrada, aforística, transportavam clarões que ainda hoje me iluminam. É certo que aproveitava, muitas vezes, as circunstâncias da minha correspondência ainda juvenil, mas aproveitava-as para lançar à terra sementes que só muito lentamente foram germinando.
         Sobre as comunidades linguísticas, económicas e políticas, por exemplo, disse-me em 24/5/1993:
         A comunidade certa para Portugal tem agora início da parte do Brasil, […] é ainda imaginação dos do culto [do] Espírito que passaram às Américas no [século] XVI. Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa. Um dia iremos mais em frente e seremos uma Comunidade Mundial dos Povos de Línguas Ibéricas. Pense só na extensão disto. Veja só quanto mundo. Das Baleares a Timor […]. Capital? Cada um a tenha dentro de si – e, no mapa, a adore como lhe for próprio em todos os aspectos do concreto e do transcendente.
         No final da sua existência, Agostinho da Silva não escondia alguma desilusão em relação ao seu “apostolado”. Chegou a dizer-me: “em Portugal, já se escreveu bastante. Falta agir”. Um dia (17/3/1993), surpreendeu-me com uma máxima que passou a ser um farol, quase uma regra de vida:
         O fundamental é que não acabemos por dentro – e o que temos que estabelecer é como vamos viver num mundo tão complicado. Temos que viver plenamente por dentro e daí tirar a cal para caiar o universo.”
         Este pensamento tinha confirmação nas suas convicções religiosas e no seu olhar sobre a criação humana e divina. A dada altura (22/9/1993) resolveu esclarecer-me:
         Toda a religião que vale é apenas a crença que se pode ter seguido que não é demonstrável por matemática, e que é, quanto a mim, a Credibilidade Absoluta, aquilo que é totalmente o de que nós todos temos uma centelha, o sermos todos criadores, mais ou menos apreciados, o que não importa; seja como for, criemos. E para o enjoo que tantas vezes o diário traz, o mesmo remédio que se usa a tudo [?]: Olhar o horizonte e escutar o grito da chegada, mesmo que o não haja.
         Cristão com raízes na humildade da doutrina franciscana, ensinou-nos a transcender a existência, a chegar à vida pelo serviço: “A quem jamais me dá ordens / faço o que não apeteço / mas sou contra se alguém manda / pois sirvo, não obedeço.” Em 13/8/1993 fez chegar aos meus olhos talvez o seu maior desejo:
         E quem sabe se não seremos todos um dia de uma Ordem Geral dos Irmãos Servidores, que só daqui a muito[s], muito[s] anos tenha estatuto e cuja Regra essencial seja a de nunca mandar, mas servir, e com gosto e com agradecimento.
         No dia em que esta aspiração profética se concretizar, terá o mundo um novo paradigma. Chegará então a fraternidade universal, a que muitos chamam a Idade do Espírito Santo. Que assim seja!

Ruy Ventura