terça-feira, 27 de novembro de 2012

 
 
A maldade
de uma reforma administrativa
 
 
                   

Tenho de começar este texto recordando os sinónimos da palavra “cobardia”. Se começa por ser falta de força moral, ausência de coragem, rapidamente se transforma em deslealdade, em baixeza, em perversidade e em traição – ou seja, em maldade. A esta perigosa forma de fraqueza (que normalmente caracteriza pessoas, sociedades e regimes que só são fortes perante os fracos), tenho de somar contudo a ignorância – não apenas falta de conhecimento, mas também ausência de instrução, de cultura e de saber. Perigosa estupidez, quando elevada aos cumes da técnica, transforma-se em maldade, numa maldade convencida e sobranceira.
A reforma administrativa, recentemente “proposta” ao governo e ao parlamento, não parece dispensar qualquer destes ingredientes. É cobarde – porque é desleal, traidora, perversa e maldosa, ao escolher a adopção de uma violência inusitada contra os fracos, como forma de protecção dos fortes. É ignorante, inculta, iletrada e maldosa – porque a sua concepção (além de critérios financeiros, demográficos e outros que só o diabo conhece), não teve em conta nem a geografia, nem a história, nem a sociologia e muito menos a economia e a política. Tais qualificativos bastariam para lhe atribuirmos o epíteto de “ignóbil porcaria”, não se tratasse ainda de um acto discricionário onde saltam à vista a incompetência técnica, um espírito anti-democrático e um total desprezo pelos mais elementares direitos do ser humano que vive em sociedade.
Se este conjunto de documentos não manifesta incompetência, então é, deliberadamente, um exemplo de mentira, o que, a ser verdade, revelaria critérios de actuação política só admissíveis em ditadura ou tirania. Como se explica, por exemplo, que num dos relatórios se proponha a extinção de duas freguesias do concelho de Portalegre (Carreiras e São Julião) porque as respectivas sedes distam apenas cerca de dois quilómetros “sem acidentes orográficos ou outros obstáculos relevantes” pelo meio, quando, na realidade, a distância entre elas é muito maior, tendo a dividi-las montes e serras com reconhecida altitude (num dos casos, o alto de São Mamede, ponto cimeiro a sul do Tejo, com mais de mil metros)?
Há, ainda, a admissão de critérios tirados da roleta. Como é possível que, numa sede municipal como Castelo de Vide, só porque tem a sorte de estar num concelho com apenas quatro freguesias, se mantenham três delas no interior de uma vila pequena – e uma cidade com a dimensão de Setúbal, porque tem mais autarquias, seja obrigada a ficar apenas com uma no seu núcleo urbano?
Das três, uma: ou houve incompetência, ou houve desleixo, ou houve maldade, maldade substanciada na manipulação de dados como forma de fundamentar o inaceitável. E tudo pago, e decerto bem pago, com o dinheiro dos contribuintes, tão escasso!
Esta reforma é, ainda, anti-democrática. Não respeita qualquer praxe de um regime livre. Afirma, por exemplo, que a pronúncia de uma assembleia municipal pela conservação de todas as freguesias do seu concelho é considerada uma não-pronúncia… Mais grave que isto é, contudo, retirar às populações residentes e proprietárias o direito de se pronunciarem directamente sobre o seu futuro. Só aos eleitores/contribuintes caberia decidir, num eventual referendo, a manutenção da sua freguesia, a sua junção com outra vizinha e, até, a possibilidade de mudar de município, se essa fosse a vontade maioritária. Quem tem medo da voz do povo? Começo a dar razão àqueles que afirmam que Portugal parece uma democracia, mas na realidade está longe de o ser, seja gerido por socialistas ou por social-democratas.
Integrada numa estratégia geral de abandono das populações fragilizadas do interior, esta maldosa e injusta “reforma” é, ainda, violentadora dos direitos elementares dos mais fracos. Não pode ser vista isoladamente. É mais um passo da marcha para o abismo do mundo rural, do caminho para a desertificação, que tem levado ao encerramento de maternidades, escolas, centros de saúde, hospitais, postos de correio, tribunais, quartéis, etc.. Há neste momento aldeias que são antecâmaras da morte: só têm casas, total ou parcialmente desabitadas ou arruinadas, lar de idosos, igreja para missas de sufrágio e cemitério. Tudo o mais foi abandonado pelos poderes públicos – o que se acentuará com rapidez se esta reforma for por diante como está.
Sendo evidente que pouca poupança trará a extinção de mais de um milhar de freguesias, haveria ainda assim outras formas de reduzir a despesa, nomeadamente nos municípios e noutros serviços supérfluos do Estado. A opção foi, contudo, assassinar num terço das nossas terras o único órgão eleito que serve povoações com escasso acesso a outros meios de acção sócio-política. Valeria a pena reformar com saber a administração da grande faixa litoral e promover medidas que atraíssem mais habitantes ao interior, numa estratégia de discriminação positiva. Mas não é esse o objectivo dos cobardes e velhacos que há muito decidiram esvaziar o interior para melhor o ocuparem e dominarem com “projectos de interesse nacional” que só a eles interessam (assim me confidenciou há cerca de um ano um homem que ocupou o cargo de ministro). Sabem que, do outro lado, terão pouca luta, pois os adversários são pessoas envelhecidas ou cidadãos sem meios para expressarem a sua indignação e a sua revolta. Sabem que, ao seu lado, está a ignorância de uma população urbana que despreza tudo quanto vá além do seu mesquinho mundo exibicionista e consumista…
Chegados a este ponto, urge perguntar sem medo se não existirão traidores por obras ou por omissão. Devemos estranhar a falta de acção de alguns políticos, de alguns autarcas que pouco ou nada dizem, pouco ou nada fazem, que talvez de propósito fundamentaram mal as decisões tomadas. Não seria inédito se, mais uma vez, trocassem o bem-estar dos seus conterrâneos por futuros proveitos, por benefícios vindouros retirados da nova organização do território. Pensarão, em segredo, no novo fôlego que ganharão em freguesias refundidas, agora que já não podem concorrer àquela que dominaram durante anos a fio. Há sempre traidores – e nem sempre distantes. É preciso estar alerta.
Quanto a nós, simples cidadãos, é importante continuar a lutar, ainda que o pior venha a acontecer. E, se o pior acontecer, transformemos a extinta autarquia numa comunidade. Ou seja, mesmo que a freguesia desapareça, devemos continuar a viver em comum, a trabalhar para o bem comum, fazendo valer os nossos direitos. Será preciso trabalhar para futuro, com os olhos abertos, olhos postos numa identidade que deve ser reconquistada e reinventada como alicerce de um novo e inovador edifício social e convivente.
 
Ruy Ventura
Vila Nogueira de Azeitão, Novembro de 2012

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

 
 
PEQUENOS INDÍCIOS

Resolvi nesta crónica não sair do pequeno território em que costumo mover-me. Às vezes, para compreendermos o mundo, basta atentarmos em quanto nos rodeia e percebermos até que ponto acontecimentos insignificantes são sintomas do que se passa e indícios do que poderá vir a passar-se na sociedade.
Há poucos dias, uma horda nocturna de adolescentes e jovens adultos atormentou as ruas do meu bairro. Aproveitando a "licença" concedida por uma "festa" que nada tem que ver com a cultura do nosso país, resolveram vandalizar as paredes de várias habitações com pinturas e inscrições obscenas, partir janelas de um estabelecimento comercial, danificar uma central eléctrica e destruir mais alguma propriedade pública, de todos. Apesar do barulho animalesco, do posto das forças de segurança, a duzentos metros, não veio qualquer reacção. Nas mesmas ruas, segundo me contaram, vai sendo hábito aparecerem em pleno dia carros com pneus esfaqueados e pintura riscada. Sem que as autoridades façam algo para evitar tal situação. Há até quem afirme que os agentes já declararam saber quem pratica tais actos: os mesmos que até têm assaltado algumas vivendas, mas que não é possível responsabilizar sem haver flagrante. Desse flagrante se foge, contudo, não patrulhando as ruas como deve ser, surgindo nos locais do crime, mesmo que sejam a duzentos metros, meia hora ou três quartos de hora depois. Zelo só existe na autuação de automóveis mal estacionados, desde que não estejam na rua da esquadra, porque aí o espaço sobre os passeios pertence aos veículos dos próprios membros da agremiação.
No meu local de trabalho, ouço que três membros de uma comunidade que persiste na sua auto-discriminação resolveram invadir as instalações para sovarem algumas crianças com cor de pele diferente. Nas imediações, vejo donos de estabelecimentos comerciais quase falidos a transportarem os seus filhos - pasmemo-nos - em automóveis topo de gama. Finjo que estou distraído e ouço palavrões contra uma figura que se tem justamente notabilizado na luta contra a fome no nosso país. Dizem, alto e do alto da sua justiça, que ninguém tem o direito de sugerir que devemos prescindir dos lautos lanches na pastelaria, das mariscadas ao fim de semana, das férias em países estrangeiros, da frequência de bares e de discotecas, da assistência a concertos de música pop ou pimba cujos bilhetes custam o valor dos alimentos consumidos durante uma semana por uma família normal.
Apuro o ouvido na rua e oiço a revolta dos meus concidadãos, apelando (talvez sem saberem) ao despedimento de funcionários públicos e ao encerramento de serviços, de que, depois, terão saudades, organizando manifestações para que voltem a abrir. Ligo o computador e leio alguns textos, plenos de ira e de insanidade, que se publicam na internet. Há quem apele à morte de todos os políticos - desejando, decerto inconscientemente, o regresso de regimes autocráticos, ditatoriais e tirânicos, em que um único político chega para tudo dominar, decerto com menor despesa (Salazar por essas e por outras tem sido considerado um "santo ditador").
Chego a casa, abro um livro de José Ortega y Gasset. Leio: "É indiferente se [o homem massificado] se mascara de reaccionário ou de revolucionário: activa ou passivamente, dando umas ou outras voltas, o seu estado de ânimo consistirá, decisivamente, em ignorar toda a obrigação e em sentir-se, sem que suspeite das razões, detentor de ilimitados direitos." Continuo: "as massas crêem que têm o direito de impor e de dar vigor de lei às suas conversas de café". Não páro: "[...] a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem a ousadia de afirmar o direito à vulgaridade e impõe-no em qualquer lado. [...] Quem não seja como os outros, corre o risco de ser eliminado."
Segundo o escritor espanhol, estas e outras características do "homem massificado" deram origem, nas primeiras décadas do século XX, aos horrores do fascismo, do nazismo e do comunismo. Pergunto-me, com alguma angústia, a que abismo nos levarão agora.

Ruy Ventura

sexta-feira, 2 de novembro de 2012


Ilustração de Luís Afonso.


NA TERRA DO CONTO DO VIGÁRIO


Portugal é uma plutocracia financeira de espécie asinina. É, como todos os países modernos, […] uma oligarquia de simuladores. Mas é uma oligarquia de simuladores provincianos, pouco industriados na própria histeria postiça. Ninguém já engana ninguém – o que é tristíssimo – na terra natal do Conto do Vigário. Não temos senão os vigaristas de praça como prova de qualquer sobrevivência das qualidades de intrujice da nação. Ora um país sem grandes intrujões é um país perdido, porque a civilização, em qualquer dos seus níveis, é essencialmente a organização da artificialidade, isto é, da intrujice. ‘Quem não intruja não come’”.
Não, estas palavras – como é bom de ver – não são minhas. Não me importaria de tê-las escrito – porque com elas concordo –, mas não me pertencem senão enquanto leitor. Apesar de ter colegas na sala de professores da minha escola e muitos compatriotas meus que, do alto da sua inteligência, põem no caixote do lixo todas as doutrinas e opiniões que não tenham sido estruturadas por estrelas vivas e decadentes, continuo a orgulhar-me de quanto me foi dado ler ao longo da vida. Quem escreveu as palavras que transcrevi chamou-se Fernando António Nogueira Pessoa, corria o ano de 1925 – e só agora vieram a lume, conhecendo a luz da edição (saberá o Diabo porquê).
Nesse mesmo texto, entrevista inventada que regista as opiniões de um dos seus heterónimos mais incompreendidos e, por isso mesmo, mais afamados (Álvaro de Campos), o autor de Mensagem diz verdades tão importantes quanto estas: “A massa do país nunca importa. Julga alguém que o ‘povo’ faz revoluções? […] A maioria é essencialmente espectadora. […] O eleitor não escolhe o que quer; escolhe entre isto e aquilo que lhe dão, o que é diferente. Tudo é oligárquico na vida das sociedades. […]” E acrescenta: “Não há correntes proletárias, […] não há radicalismo em parte nenhuma. Tudo isso é o avesso da plutocracia financeira, e é provavelmente dirigido e financiado por ela. Não há nenhum movimento radical que não seja movido, em última causa, pelo Frankfurter Bund, ou por qualquer outro organismo derivado da Internacional Financeira […]”.
Não será necessário recordar que “plutocracia” é o governo dos ricos e dos usurários e que a “oligarquia” é o poder dos poucos que detêm influência sobre a maioria que não tem nem capital nem voz. Frequentemente – como acontece em tantos lugares e países nos nossos dias – uma e outra juntam-se, refinam-se, transformando-se numa “cleptocracia”: o governo dos ladrões. Mas adiante. Com toda a sua ironia e sarcasmo, Pessoa chega a escrever ao Demo, sugerindo-lhe medidas de saneamento social:
É preciso criar abismos, para a humanidade que os não sabe saltar se engolfar neles para sempre. § Criar todos os prazeres, os mais artificiais possível, os mais estúpidos possível, para que a chama atraia e queime. § O problema da sobrepovoação, o problema da sobreprodução eliminam-se criando-se focos de eliminação humana (por meio de todos os vícios), criando focos de inércia humana (por meio de todas as seduções). Fazer suicidas, eis a grande solução sociológica. […] É nosso dever de sociólogos untar o chão, ainda que seja com lágrimas, para que escorreguem nele os que dançam. […] Depois, dos recantos das províncias […] os fortes surgem e a civilização continua. […] a Realidade é um bocado de sol simples, um quintal herdado e a certeza de ser um indivíduo.
Quem tiver ouvidos para ouvir, que oiça! Não são necessárias explicações adicionais, nem é preciso “fazer um desenho” para explicar o que Pessoa disse e quis dizer. Termino com um excerto de “Ultimatum”, assinado pelo mesmo autor em plena Primeira Guerra Mundial: “A Europa tem sede de que se crie, tem fome de Futuro! § […] Quer o Político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu Povo! § Quer o Poeta que busque a Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para os produtos farmacêuticos! § Quer o General que combata pelo Triunfo Construtivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros.
         Repito: quem tiver ouvidos para ouvir, que oiça! E não se deixe levar pelo ruído sedutor que está por todo lado, a começar pelas nossas casas, onde entra pela televisão e pela internet.

Ruy Ventura

quarta-feira, 24 de outubro de 2012


A NORMA E A CRISE
Não é nova a teoria de que tudo, no mundo, oscila entre a norma e a crise. Podemos ver neste movimento a afirmação de Eça de Queirós, segundo a qual a História é uma velhota que se repete sem cessar, ou essoutra visão do devir humano em que os acontecimentos surgem sob o símbolo do pêndulo. Ou seja, periodicamente há uma repetição modificada de convulsões e pacificações, de disforias e euforias, de depressões e acalmias. Houve mesmo quem, a partir desta concepção da História, teorizasse o percurso das revoluções científicas, sublinhando que a passagem de uma norma a outra norma (ou seja, de um paradigma a outro paradigma) só se faz através de períodos mais ou menos dilatados de crise e de intensa discussão.
Se olharmos atentamente, sem paixão mas com interesse, para tudo quanto se vem passando no mundo ocidental, sobretudo nos países sujeitos a uma penúria financeira (entre os quais, Portugal), não é difícil perceber que se inicia, agora de forma generalizada, um período de transição nas relações sociais, políticas e económicas. O paradigma anterior estilhaçou. O que era normal deixou de o ser. Há muito que vozes autorizadas e clarividentes o vinham anunciando, algumas delas há mais de um século. Mas foi preciso que a norma vigente – suportada não pela dignidade humana, mas pelo império do dinheiro, dos jogos financeiros e das suas diabólicas seduções e intenções – rebentasse, para que todos nos movimentássemos e começássemos a agir.
É esta a crise – e não apenas a falta de dinheiro nas nossas contas bancárias. Há quem lhe chame “crise de valores” – e não está mal visto. Creio que ela não cessará enquanto os seres humanos não mudarem por completo as suas relações com a Natureza, com a Memória, com os seus semelhantes, com o Poder político e social, com o Trabalho, com a Educação, com a Saúde, com o dinheiro, com tudo quando os rodeia, os eleva e os limita.
A maioria dos nossos concidadãos, por enquanto, ainda reivindica apenas uma “devolução”, a devolução de um tempo dourado em que não faltava numerário (próprio ou emprestado) para tudo e mais alguma coisa. Mas, a pouco e pouco, vão-se ouvindo frases que desejam uma mudança verdadeira e completa. Infelizmente, a miopia, a falta de conhecimento da História ou a maldade leva muitos dos autores dessas reivindicações a misturarem realidade com ficção, a desejarem (consciente ou inconscientemente) o regresso a “soluções” que, de forma directa ou indirecta, deram nascimento a algumas das maiores monstruosidades políticas e sociais dos últimos cento e cinquenta anos. Lembro o comunismo nas suas várias expressões localizadas e, obviamente, o nazismo e outras formas de poder tirânico mais ou menos evidentes. É preciso ter muito cuidado neste tempo em que “Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem.” (Fernando Pessoa).
Angustia-nos termos consciência de que este período de crise ou de transição poderá ser mais longo do que se espera. Mais tarde ou mais cedo, afectará, assim o creio, todos os países que têm vivido sob o mesmo paradigma (mesmo aqueles que agora se apresentam como “credores”), norma em que o ter estrangulou o ser. A resistência deve ser feita tendo em conta a memória ou lembrança do que nos antecedeu e cessou e um olhar virado para o futuro, esperançoso. Se necessário, não deveremos ter medo de “abdicar” para sermos outra vez “reis” do nosso destino. Talvez tenhamos de admitir as palavras de Teixeira de Pascoaes, ditas em 1925: “[…] estamos numa época caótica e de transição, de que há-de nascer uma nova harmonia social, para além de quaisquer formas de governo, que não me interessam. […] É preciso […] que se dê uma grande renascimento religioso, porque só pela religião, pela Fé em Deus, se pode redimir a Humanidade.

 

 
PALAVRAS QUE FAZEM VER

Projectos de investigação diferentes, que nos últimos tempos me têm ocupado, levaram-me ao encontro de vozes e pensamentos diversos, mas confluentes. Têm todos eles um centro – a percepção das relações sociais e políticas em tempos de crise e de desigualdade entre os homens.
Há cerca de dois mil anos, alguém escreveu numa carta: “[…] ricos, chorai em altos gritos por causa das desgraças que virão sobre vós. As vossas riquezas estão podres, e as vossas vestes comidas pela traça. […] Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Tendes vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os vossos apetites… para o dia da matança!
No século XII, houve por sua vez quem dissesse sem hesitações nem medos: “Os ricos e poderosos roubam aos pobres os seus haveres, adquiridos com suor e lágrimas. Ainda por cima, chamam-lhes seus vilãos, quando eles é que são vilãos do diabo. […] O rico deste mundo perverte a justiça, roubando os pobres ou não lhes dando o que é seu.” E acrescenta com igual ousadia e firmeza: “É sacrilégio dar a pertença dos pobres a quem o não é. Se dás a um parente, deves dar não por ser parente mas por ser pobre. […] Não dês, portanto, sangue ao sangue, mas dá ao peregrino e ao pobre.
Já muito mais perto de nós, um dos gigantes da nossa literatura portuguesa e da literatura de qualquer parte do mundo afirmou: “[…] um novo e inesperado actor calcou o tablado. […] Ao pé dele tudo é mesquinho: homens de estado, negociações, guerreiros e príncipes. Salvou-nos. E logo que nos salvou sumiu-se na mesma estúpida resignação […]. Mas nem tudo se perde: alguma coisa de amargo – dúvida ou cólera – ficou na consciência colectiva, que há-de desentranhar-se no futuro em novos gritos. Esperemos o que a noite vai gerando…
Acrescento a estas erupções verbais, tão oportunas, as palavras ditas por um homem do povo mais humilde, ou seja, mais próximo do húmus, da terra fértil: “Quem trabalha e mata a fome / Não come o pão de ninguém; / Mas quem não trabalha e come, / Come sempre o pão de alguém!” “Entre grandes e pequenos / Ficávamos quase iguais, / Dando a uns um pouco menos / E a outros um pouco mais.” “Vós que lá do vosso império / Prometeis um mundo novo, / Calai-vos, que pode o povo / Q’rer um mundo novo a sério.
Que interessa que estes textos tenham sido escritos em momentos distintos da História da Humanidade? É importante sabermos que eles saíram da mão e/ou do pensamento de Tiago-o-Justo, Santo António de Lisboa, Raul Brandão ou António Aleixo? Parece-me que não. Importa a sua justiça, a clarividência que nos dão e a mudança de atitudes que possam propor ou proporcionar. Assim eles fiquem na nossa memória, na memória de quem os lê, e empurrem para aquilo que interessa nestes tempos conturbados, de transição: a mudança e o avanço.

terça-feira, 18 de setembro de 2012




MANIFESTAÇÃO E MUDANÇA

Se queres que os portugueses se mexam, vai-lhes aos víveres”. Não sei bem quem é o autor desta frase. Há quem diga que foi escrita por Eça de Queirós – e é bem possível. Muito nos faz palrar ou falar, pouco nos move. Mas quando se trata de defender o nosso rendimento, não hesitamos. E fazemos bem – embora façamos pouco. Muito pouco.
Raramente participo em manifestações. Mesmo quando concordo com as motivações que levam os meus compatriotas a desfilar pela rua. Não tenho feitio nem paciência para ajuntamentos e, além disso, julgo que são mais eficazes outras estratégias ardilosas de exposição da opinião colectiva ou da indignação de uma comunidade ou de um grupo profissional. Tal não significa, contudo, que rejeite ou reprove esta forma de luta – desde que seja expressão de uma ânsia de justiça social, em prol da dignidade da pessoa humana. Quando tal acontece (e nem sempre acontece…), emociono-me, mesmo à distância.
Os portugueses vêm manifestando de muitas e variadas formas o seu repúdio contra as medidas “de austeridade” postas em prática por este governo, impulsionado pelas organizações internacionais que nos emprestaram dinheiro para que o Estado cumprisse as suas obrigações, nomeadamente o pagamento de salários e de pensões. Não têm feito mal. É até proveitoso interna e externamente, pois assim se sublinha que a estratégia não pode ser aplicada “custe o que custar” e que há outras vias – mais equilibradas e mais dignificantes – para chegar ao mesmo lugar. Temo, contudo, que estes episódios de comoção colectiva não passem de explosões de alma sem consequências na mudança de vida e de mentalidade, de actos de rebeldia que não chegam a uma verdadeira epifania da liberdade.
Infelizmente, se circularmos pela internet e por outros espaços de discussão aberta, chegamos à conclusão de que as palavras do escritor espanhol Miguel de Unamuno, escritas há um século, continuam actuais, infelizmente. Uma boa parte dos portugueses é submissa “até quando se rebela. […] Têm a cólera do veado ou do carneiro, que os leva a actos de violência frenética. Quando o ovino se irrita, arremete contra o primeiro que encontra, e depois tudo fica como dantes. Por aí se explica o regicídio e as suas consequências. Rebeldia, sim; independência, não. Aqui, como na Galiza, pode florescer o anarquismo, mas não o sentimento de verdadeira liberdade. E a anarquia é servidão.
Acredito e acreditarei na justiça das manifestações surgidas e a surgir, se elas forem expressão de independência de espírito e de um olhar poliédrico sobre os erros que nos trouxeram até aqui. Passos Coelho e o seu governo merecem palavras indignadas sempre que não tomarem decisões certas e patrióticas, mas igualmente devem ser alvo da nossa voz exaltada Sócrates e os seus auxiliares no regabofe dos últimos anos, os cidadãos que se deixaram deslumbrar por autarcas e governantes fazedores de obra a todo o custo, os portugueses que nunca hesitaram em pedir “um jeitinho” (e são tantos), os nossos compatriotas que corromperam e foram corrompidos, aqueles para quem não há vida além do subsídio, quantos têm contribuído para o desemprego por actos e por omissões, os agentes que têm transformado a justiça em injustiça, a União Europeia que engulosou meio-mundo com dinheiro fácil “a fundo perdido” e pagou para não se produzir, etc., etc.. Tirando uma curta faixa de jovens e de crianças, todos somos um pouco ou muito culpados… Na encruzilhada em que estamos, uma manifestação tem de ser um acto de protesto, mas também um momento de catarse, de contrição e de propósito de mudança.
Uma pancada nos olhos faz ver”, como afirmava uma frase inscrita num armazém de Cacilhas? Fará ver se abrirmos os olhos e virmos quem e o que nos bateu.
Há, no entanto, algo que nos devemos recusar a aceitar. Custe o que custar. São os ataques à dignidade humana, expressos no desemprego injustificado, nos salários indignos, nos horários de trabalho iníquos, nas políticas anti-familiares, nos ardis que visam estupidificar os cidadãos, na erosão do direito à saúde, à educação e à cultura, no esvaziamento calculado do interior, nas estratégias promotoras do êxodo e da emigração. Contra eles, devemos lutar por todas as vias, sem tréguas, sem hesitações. Esta tarefa árdua merece a manifestação das nossas convicções, do nosso empenho e do nosso trabalho.
Ruy Ventura

sexta-feira, 14 de setembro de 2012



QUATRO PERGUNTAS


         Li há pouco tempo um texto que é oportuno partilhar. A tradução é minha, dado que o original foi escrito num castelhano do século XVI:
         Que se pode comprar com este dinheiro que desejamos? Será coisa valiosa? Será coisa durável? Queremo-lo para quê? Negro descanso se procura, que tão caro custa. Muitas vezes se procura com ele o inferno e se compra fogo perdurável e penas sem fim. Se todos o atirassem à terra, sem dele querer saber, que concertado andaria o mundo, sem canseiras! Com que amizade nos trataríamos todos se acabasse o desejo de honrarias e dinheiro. Tenho para mim que tudo se remediaria.
         Parece ofensivo falar deste modo, ir buscar um texto como este, nos tempos que fogem (já não correm, fogem). Parece falta de respeito por aqueles que, nestes dias, passam fome e muito mais – ou, pelo menos, vivem apertados nos seus cada vez mais esqueléticos orçamentos familiares. E, no entanto, as quatro perguntas sobre o dinheiro martelam no cérebro: – Que se pode comprar com ele? – Serão coisas com real valor? – Serão duráveis? – Para que o queremos? (Será bom meditarmos nelas.)
         No parágrafo transcrito, repare-se, não se discutem as facilidades concedidas pelo uso do dinheiro como meio simbólico nas transacções comerciais – e muito menos se põe em causa o direito de cada um ter uma retribuição justa pelo seu trabalho desempenhado com zelo e competência. Põe em causa, sim, a colocação do dinheiro no centro da existência humana, destruindo a capacidade de os membros da nossa espécie se moverem em direcção à verdadeira vida, isto é, em direcção a uma vivência espiritualmente superior (uma super-vivência ou sobre-vivência).
         Sei bem que é loucura falar disto. A televisão, os concursos estúpidos e/ou estupidificantes, a revistas cor-de-rosa, a inveja e a cobiça – tão habilmente manipulados pelo “marketing” empresarial, em várias décadas de bombardeamento e lavagem ao cérebro – já destruíram na maior parte dos nossos semelhantes qualquer aspiração que vá além dos desejos de dinheiro (adquirido sem esforço), de honrarias (merecidas ou não), de sucesso social e financeiro, de um poder de compra que leve à aquisição de bens que nunca nos tornarão melhores seres humanos (mas, com frequência, nos põem à porta de instintos animalescos). Falar numa existência digna – em que da satisfação das necessidades básicas (na alimentação, na habitação, na locomoção, na saúde e na educação) se passe a uma vivência mais elevada – é falar em algo de bizarro!
         E, no entanto, todos precisamos dessa forma de vida. Talvez por não termos ainda tomado consciência de que a meta a alcançar se situa nesse lugar alto, andamos angustiados, às vezes desesperados, pois esta crise, sendo financeira e económica, constitui sobretudo um abanão que nos obriga a ver o engano em que caímos, em que fomos caindo – ou, melhor, o abismo para onde nos atiraram. Ao não queremos ver, fechamos os olhos e tornamo-nos vulneráveis, sujeitos a perecer frente a qualquer perigo. A maioria da humanidade deseja enriquecer por fora, quando precisa apenas do essencial e, depois dele, de um enriquecimento interior, de algo que preencha o vazio existencial que caracteriza a nossa sociedade.
         Há muitas receitas para lá chegar. Cada um terá a sua, terá de construí-la. A autora do parágrafo com que iniciei este texto propôs a sua. Chamou-se Teresa de Ahumada e é conhecida em todo o mundo como Santa Teresa de Jesus ou de Ávila. Dizem assim os seus versos:
         Nada te turve / Nada te espante / Tudo acontece / Deus não se muda / Com paciência / Tudo se alcança / Quem a Deus tem / Nada lhe falta / Só Deus basta.

Ruy Ventura

"Santa Teresa de Jesus", escultura em madeira do século XVIII (Museu Municipal de Portalegre)