terça-feira, 18 de setembro de 2012




MANIFESTAÇÃO E MUDANÇA

Se queres que os portugueses se mexam, vai-lhes aos víveres”. Não sei bem quem é o autor desta frase. Há quem diga que foi escrita por Eça de Queirós – e é bem possível. Muito nos faz palrar ou falar, pouco nos move. Mas quando se trata de defender o nosso rendimento, não hesitamos. E fazemos bem – embora façamos pouco. Muito pouco.
Raramente participo em manifestações. Mesmo quando concordo com as motivações que levam os meus compatriotas a desfilar pela rua. Não tenho feitio nem paciência para ajuntamentos e, além disso, julgo que são mais eficazes outras estratégias ardilosas de exposição da opinião colectiva ou da indignação de uma comunidade ou de um grupo profissional. Tal não significa, contudo, que rejeite ou reprove esta forma de luta – desde que seja expressão de uma ânsia de justiça social, em prol da dignidade da pessoa humana. Quando tal acontece (e nem sempre acontece…), emociono-me, mesmo à distância.
Os portugueses vêm manifestando de muitas e variadas formas o seu repúdio contra as medidas “de austeridade” postas em prática por este governo, impulsionado pelas organizações internacionais que nos emprestaram dinheiro para que o Estado cumprisse as suas obrigações, nomeadamente o pagamento de salários e de pensões. Não têm feito mal. É até proveitoso interna e externamente, pois assim se sublinha que a estratégia não pode ser aplicada “custe o que custar” e que há outras vias – mais equilibradas e mais dignificantes – para chegar ao mesmo lugar. Temo, contudo, que estes episódios de comoção colectiva não passem de explosões de alma sem consequências na mudança de vida e de mentalidade, de actos de rebeldia que não chegam a uma verdadeira epifania da liberdade.
Infelizmente, se circularmos pela internet e por outros espaços de discussão aberta, chegamos à conclusão de que as palavras do escritor espanhol Miguel de Unamuno, escritas há um século, continuam actuais, infelizmente. Uma boa parte dos portugueses é submissa “até quando se rebela. […] Têm a cólera do veado ou do carneiro, que os leva a actos de violência frenética. Quando o ovino se irrita, arremete contra o primeiro que encontra, e depois tudo fica como dantes. Por aí se explica o regicídio e as suas consequências. Rebeldia, sim; independência, não. Aqui, como na Galiza, pode florescer o anarquismo, mas não o sentimento de verdadeira liberdade. E a anarquia é servidão.
Acredito e acreditarei na justiça das manifestações surgidas e a surgir, se elas forem expressão de independência de espírito e de um olhar poliédrico sobre os erros que nos trouxeram até aqui. Passos Coelho e o seu governo merecem palavras indignadas sempre que não tomarem decisões certas e patrióticas, mas igualmente devem ser alvo da nossa voz exaltada Sócrates e os seus auxiliares no regabofe dos últimos anos, os cidadãos que se deixaram deslumbrar por autarcas e governantes fazedores de obra a todo o custo, os portugueses que nunca hesitaram em pedir “um jeitinho” (e são tantos), os nossos compatriotas que corromperam e foram corrompidos, aqueles para quem não há vida além do subsídio, quantos têm contribuído para o desemprego por actos e por omissões, os agentes que têm transformado a justiça em injustiça, a União Europeia que engulosou meio-mundo com dinheiro fácil “a fundo perdido” e pagou para não se produzir, etc., etc.. Tirando uma curta faixa de jovens e de crianças, todos somos um pouco ou muito culpados… Na encruzilhada em que estamos, uma manifestação tem de ser um acto de protesto, mas também um momento de catarse, de contrição e de propósito de mudança.
Uma pancada nos olhos faz ver”, como afirmava uma frase inscrita num armazém de Cacilhas? Fará ver se abrirmos os olhos e virmos quem e o que nos bateu.
Há, no entanto, algo que nos devemos recusar a aceitar. Custe o que custar. São os ataques à dignidade humana, expressos no desemprego injustificado, nos salários indignos, nos horários de trabalho iníquos, nas políticas anti-familiares, nos ardis que visam estupidificar os cidadãos, na erosão do direito à saúde, à educação e à cultura, no esvaziamento calculado do interior, nas estratégias promotoras do êxodo e da emigração. Contra eles, devemos lutar por todas as vias, sem tréguas, sem hesitações. Esta tarefa árdua merece a manifestação das nossas convicções, do nosso empenho e do nosso trabalho.
Ruy Ventura

sexta-feira, 14 de setembro de 2012



QUATRO PERGUNTAS


         Li há pouco tempo um texto que é oportuno partilhar. A tradução é minha, dado que o original foi escrito num castelhano do século XVI:
         Que se pode comprar com este dinheiro que desejamos? Será coisa valiosa? Será coisa durável? Queremo-lo para quê? Negro descanso se procura, que tão caro custa. Muitas vezes se procura com ele o inferno e se compra fogo perdurável e penas sem fim. Se todos o atirassem à terra, sem dele querer saber, que concertado andaria o mundo, sem canseiras! Com que amizade nos trataríamos todos se acabasse o desejo de honrarias e dinheiro. Tenho para mim que tudo se remediaria.
         Parece ofensivo falar deste modo, ir buscar um texto como este, nos tempos que fogem (já não correm, fogem). Parece falta de respeito por aqueles que, nestes dias, passam fome e muito mais – ou, pelo menos, vivem apertados nos seus cada vez mais esqueléticos orçamentos familiares. E, no entanto, as quatro perguntas sobre o dinheiro martelam no cérebro: – Que se pode comprar com ele? – Serão coisas com real valor? – Serão duráveis? – Para que o queremos? (Será bom meditarmos nelas.)
         No parágrafo transcrito, repare-se, não se discutem as facilidades concedidas pelo uso do dinheiro como meio simbólico nas transacções comerciais – e muito menos se põe em causa o direito de cada um ter uma retribuição justa pelo seu trabalho desempenhado com zelo e competência. Põe em causa, sim, a colocação do dinheiro no centro da existência humana, destruindo a capacidade de os membros da nossa espécie se moverem em direcção à verdadeira vida, isto é, em direcção a uma vivência espiritualmente superior (uma super-vivência ou sobre-vivência).
         Sei bem que é loucura falar disto. A televisão, os concursos estúpidos e/ou estupidificantes, a revistas cor-de-rosa, a inveja e a cobiça – tão habilmente manipulados pelo “marketing” empresarial, em várias décadas de bombardeamento e lavagem ao cérebro – já destruíram na maior parte dos nossos semelhantes qualquer aspiração que vá além dos desejos de dinheiro (adquirido sem esforço), de honrarias (merecidas ou não), de sucesso social e financeiro, de um poder de compra que leve à aquisição de bens que nunca nos tornarão melhores seres humanos (mas, com frequência, nos põem à porta de instintos animalescos). Falar numa existência digna – em que da satisfação das necessidades básicas (na alimentação, na habitação, na locomoção, na saúde e na educação) se passe a uma vivência mais elevada – é falar em algo de bizarro!
         E, no entanto, todos precisamos dessa forma de vida. Talvez por não termos ainda tomado consciência de que a meta a alcançar se situa nesse lugar alto, andamos angustiados, às vezes desesperados, pois esta crise, sendo financeira e económica, constitui sobretudo um abanão que nos obriga a ver o engano em que caímos, em que fomos caindo – ou, melhor, o abismo para onde nos atiraram. Ao não queremos ver, fechamos os olhos e tornamo-nos vulneráveis, sujeitos a perecer frente a qualquer perigo. A maioria da humanidade deseja enriquecer por fora, quando precisa apenas do essencial e, depois dele, de um enriquecimento interior, de algo que preencha o vazio existencial que caracteriza a nossa sociedade.
         Há muitas receitas para lá chegar. Cada um terá a sua, terá de construí-la. A autora do parágrafo com que iniciei este texto propôs a sua. Chamou-se Teresa de Ahumada e é conhecida em todo o mundo como Santa Teresa de Jesus ou de Ávila. Dizem assim os seus versos:
         Nada te turve / Nada te espante / Tudo acontece / Deus não se muda / Com paciência / Tudo se alcança / Quem a Deus tem / Nada lhe falta / Só Deus basta.

Ruy Ventura

"Santa Teresa de Jesus", escultura em madeira do século XVIII (Museu Municipal de Portalegre)


quarta-feira, 5 de setembro de 2012




PÓRTICOS DO DESEMPREGO



Regressei há dias de férias. Por enquanto, ainda faço parte do grupo privilegiado cujas férias têm fim. (Há quem tenha “férias” intermináveis e não saiba o que fazer à vida…) Foi um mês de contenção, pois entre os trabalhadores deste país pertenço ao número daqueles que deixaram de ter ordenado dobrado no Verão. Não fosse a recente decisão do Tribunal Constitucional – e até pareceria que os únicos beneficiários do regabofe despesista dos últimos governos haviam sido os funcionários públicos, entre os quais orgulhosamente me incluo…
Dos poucos passeios que o orçamento familiar permitiu, trouxe na memória a rapidez com que agora se circula nas auto-estradas. É uma maravilha…, fatal, da nossa idade. Sem dinheiro para o combustível, poucos se aventuram a sair da toca, num tempo de enganos em que a “conjuntura internacional” é pretexto para aumentar desmesuradamente a gasolina e o gasóleo, mas já não serve para baixar os seus preços.
Nem só o preço do alimento fóssil aumentou, contudo, a velocidade de circulação nas vias rápidas. Agora temos sobre auto-estradas uns objectos metálicos novos e algo estranhos, chamados “pórticos”, que permitem a circulação vertiginosa, sem paragens para pagamento, sem a chatice da saudação a um portageiro. (Serão pórticos do paraíso ou do inferno?) Curiosamente, também nas portagens antigas o elemento humano está em vias de extinção. Aí temos ainda de parar, mas já não damos os “bons dias” a um simpático (ou antipático) cidadão. Temos de lidar, apenas, com uma maquineta que recolhe o carcanhol e agradece com uma voz metálica, gravada.
Não contesto a justiça do princípio do “utilizador-pagador” nas auto-estradas portuguesas, desde que existam vias alternativas onde se circule com segurança. Revolta-me contudo que o acréscimo de lucro das concessionárias não se traduza num retorno social justo, através da criação de um maior número de postos de trabalho. Pagaria a portagem com muito menor azedume se soubesse que esse dinheiro contribuiria para o emprego de um portageiro com família.
Nós, contudo, não estamos livres de culpas nesta substituição do homem pela máquina – com consequente aumento do desemprego –, pois deixamo-nos enganar pelos ardis de um capitalismo desumanizante e esclavagista, quando cedemos ao comodismo e à preguiça. Sempre que usamos uma máquina para a execução de uma tarefa que poderia ser feita por um semelhante nosso, com a devida remuneração, estamos a contribuir para o despedimento de trabalhadores úteis, em idade activa. Se compramos em lojas “on-line” estamos a fechar locais de comércio com rosto, se praticamos todas as operações bancárias no “multibanco” ou na “internet” estamos a despedir pessoas com que nos cruzamos todos os dias. São apenas dois exemplos.
O desemprego não é apenas um problema dos indivíduos afectados por uma rasteira da vida. É um terramoto social que, mais cedo ou mais tarde, provocará convulsões sociais seríssimas. Sempre que contribuímos para a substituição do homem pela máquina estamos a trabalhar ao lado daqueles que desejam a substituição de seres livres por seres escravizados (e, já agora, alienados por uma boca dose de trampa televisiva).

A DIFERENÇA



Sempre que estou na minha aldeia de Carreiras, situada a poucos quilómetros de Castelo de Vide e a curta distância da fronteira de Portugal com a Extremadura espanhola, aproveito para dar umas voltas por terras de contrabando, assegurando-me de que as diferenças entre povos dos dois lados são diminutas perante o muito que culturalmente nos une. Não vou lá fazer compras – e, se as faço, é por acaso e não por acto deliberado. Sou, aliás, uma pessoa pouco consumista – o que nestes tempos me vem dando jeito, embora a penúria em que vivemos me obrigue a uma selecção apertada do único bem que avidamente consumo: os livros (que não dispenso). Verdade seja dita que o aperto até tem tido aspectos positivos. Desde que a crise se instalou, muito menos lixo editorial tem entrado na minha casa.
Num dos pequenos passeios que dei nas férias de 2012, deparei-me com uma pequena cidade espanhola pejada de pequeno comércio. Pelas ruas, o chamado “comércio tradicional” – passada a hora da “siesta” – fervilhava de consumidores que, conversando, entravam e saíam das lojas, transportando sacos de compras. E nem sequer faziam distinção entre aquelas que têm um ar modernaço e as outras que, com modéstia, continuam a mostrar uma face que nos faz lembrar tempos passados.
O cenário contrário me assalta na minha cidade de Portalegre e noutras (muitas) localidades portuguesas. Aí, passo por “ruas de comércio” onde pouco mais resta do que o olhar deprimido e suplicante de comerciantes e empregados, fitando o nada e o vazio, ou seja, a ausência de clientes. As lojas das cidades lusas são muito diferentes das que abrem portas do outro lado da fronteira? Não me parece. E os preços? Também não… nem tanto.
Notei contudo uma diferença abissal entre as povoações. Enquanto na cidade espanhola não vi aberto ao público consumidor qualquer centro comercial ou hipermercado, por cá eles são presença constante e infestante. Rara é a terra portuguesa com mais de três ou quatro mil habitantes que não tem um ou mais. Houve até autarcas com traços de estupidez, de loucura ou de malvadez que aprovaram a construção de vários estabelecimentos de grande superfície, uns aos lado dos outros. Com convicção bacoca (ou não), justificaram a sua anuência com o argumento de que, assim, nasceria “desenvolvimento” nas suas terras. Esqueceram (ou não) que, deste modo, apenas promoviam a penúria e a desertificação no coração das suas cidades e na vida dos seus concidadãos – trazendo Golias para dentro da casa de Davides necessariamente mais fracos e sem instrumentos eficazes de combate. Junte-se a este acto a permissão para a abertura de três ou quatro lojas de quinquilharia chinesa e tivemos o veneno instalado e a morte anunciada.
E nós, portugueses, vamos na onda… Cada vez mais acéfalos, cada vez mais egoístas, cada vez mais palradores, cada vez mais mesquinhos, sem percebermos as consequências dos nossos actos, vamos gastando os últimos tostões nos hipermercados ou nas lojas onde se vendem sempre os mesmos artigos orientais, baratos mas de fancaria… Eleitores e eleitos, consumidores e comerciantes, todos somos portugueses e responsáveis, uns por omissão e outros por acção, pelo ponto a que chegou o nosso país.