A ARTE DE DESERTIFICAR
Já
lá vão mais de dez anos. A conversa estava animada num bar de província e
rondava o romance de um escritor alentejano, publicado com sucesso havia pouco
tempo. O ficcionista, afável, participava na discussão em pé de igualdade com
os seus leitores e, naquela noite quente, o seu livro era sobretudo um ponto de
partida para o que mais nos preocupava nas periferias da geografia portuguesa.
Entre
cervejas e palavras, fomos reparando num cidadão vestido de negro como um
corvo, mal-barbeado e com chapeirão sinistro, refastelado numa poltrona coçada.
Ora snob ora exibindo um ar de hippie fora de prazo, ia dizendo das
suas sem que alguém se desse ao trabalho de lhe dar troco. Sentindo-se
ignorado, resolveu dar o ar da sua graça. Com sotaque lisboeta, no momento em
que todos expressavam o seu alarme pela desertificação dos distritos encostados
a Espanha, teve a delicadeza de arrotar um sonoro rabo de pescada: “Eu cá
gosto muito do interior porque é deserto... Tem pouca gente... Assim é que é
bom!” Incomodados, olhámo-nos em silêncio. Até que um dos presentes, com a
frontalidade que se reconhece nos bons alentejanos, resolveu responder ao
indivíduo: “Já cá faltava a fina-flor do
entulho… O senhor diz isso porque é um
gajo amanhado, com dinheiro para ir à capital a bons médicos, para encontrar
por aquelas bandas o que aqui falta. E quem cá mora?” O forasteiro
não retorquiu – nem poderia retorquir. E a conversa continuou, tornando-o
transparente, sobre as causas do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de
que o alentejano, quando perde a dignidade, mata-se, sacrifica-se. E quanta
dignidade lhe têm retirado, não só os forasteiros que “gostam muito do
Alentejo”, mas só sabem espezinhar quem por lá habita, mas também os
nativos que fomentam uma existência pequenina e dependente, de modo a exercerem
sem oposição o seu caciquismo político e económico e a tornarem invisível a sua
mediocridade social e cultural.
Tenho
recordado nos últimos tempos a conversa do tal hippie fora de prazo ao
confrontar-me com tantas medidas que os últimos governos têm vindo a publicar
em Diário da República.
Quem as lê de um condomínio de luxo decerto fica agradado. Encerrar escolas é
bom, segundo afirmam, pois colocará todos os alunos num só edifício com condições
melhoradas e mandará para casa mais uns funcionários públicos inúteis. Obrigar
homens e mulheres, idosos, a deslocarem-se a um centro de saúde fora da sua
área de residência pode ser positivo, pois terão cuidados de saúde que na sua
terra não teriam. Obrigar as raianas a terem os seus filhos em maternidades espanholas
é porreiro, pois assim ficarão de uma vez por todas com a cidadania espanhola,
que já vão adoptando quando preferem abastecer-se de combustível do outro lado
da fronteira. Extinguir freguesias rurais está bem visto; para que quer aquela
gente perto de si uma autarquia, se a podem ter a trinta-quarenta quilómetros
de distância...? Fechar repartições de finanças e tribunais é boa ideia, pois
são despesa excessiva para tão poucos eleitores. Quem conhece bem o interior
português e outras terras onde tais dislates têm sido cometidos sabe que essas
medidas legislativas, concretizadas pelos governos de José Sócrates e Passos
Coelho, embora pensadas por um poder ilegítimo nacional e estrangeiro, são uma
machadada fatal na dignidade de quem lá vive e, logo, um veneno mortal que
aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas portuguesas. Pouco interessa que as
pessoas desses concelhos tenham uma carga fiscal idêntica à de um lisboeta, mas
sem os mesmos serviços à sua disposição. São cidadãos de segunda ou de
terceira, pensam; têm de pagar e calar – ou de emigrar, nem que seja para a
cova do cemitério.
São
esses os cálculos de quem vê as aldeias e vilas portuguesas apenas como fontes
de rendimento. Têm pena quando uma povoação é muito habitada; os
empreendimentos turísticos saem mais caros; casitas e terrenos que poderiam
custar uns tostões têm um preço justo, o que é francamente um obstáculo ao
progresso (de algumas contas na Suíça). Nada lhes importa que as terreolas tenham
junta de freguesia, médico, posto de correios, farmácia ou escola, que os
centros de saúde possuam atendimento permanente, que haja maternidade, finanças
ou tribunal próximos. Aos olhos de quem manda nos governos e ninguém elege, as
nossas aldeias são pavilhões de caça ou campos de férias, lugares de passagem
que transformam em não-lugares, sem vida, sem nada além de um cenário lavadinho
para turista ver.
Os reis dos primeiros
tempos da nossa História legislavam no sentido de favorecerem a fixação das
populações. Os governantes de hoje fazem o contrário. Primeiro adubaram os
caciques locais (que, diligentemente, pela sua passividade, pela sua
mediocridade e pelo seu fechamento, fizeram diminuir a população residente),
esquecendo os habitantes das nossas vilas e aldeias, não pondo em prática
estratégias que contrariassem o êxodo iniciado nos anos ’60 do século passado.
Agora, retiram a boa parte dos portugueses condições mínimas de dignidade –
para que o esvaziamento se complete.
Não tenhamos dúvidas:
muitos citadinos vêem no mundo afastado dos centros de poder uma terra de
cafres. Para que os seus negócios dêem o lucro esperado, terão de transformá-lo
numa terra devastada, onde habitem apenas servos sem gleba.