segunda-feira, 30 de junho de 2014


A ARTE DE DESERTIFICAR

 

Já lá vão mais de dez anos. A conversa estava animada num bar de província e rondava o romance de um escritor alentejano, publicado com sucesso havia pouco tempo. O ficcionista, afável, participava na discussão em pé de igualdade com os seus leitores e, naquela noite quente, o seu livro era sobretudo um ponto de partida para o que mais nos preocupava nas periferias da geografia portuguesa.

Entre cervejas e palavras, fomos reparando num cidadão vestido de negro como um corvo, mal-barbeado e com chapeirão sinistro, refastelado numa poltrona coçada. Ora snob ora exibindo um ar de hippie fora de prazo, ia dizendo das suas sem que alguém se desse ao trabalho de lhe dar troco. Sentindo-se ignorado, resolveu dar o ar da sua graça. Com sotaque lisboeta, no momento em que todos expressavam o seu alarme pela desertificação dos distritos encostados a Espanha, teve a delicadeza de arrotar um sonoro rabo de pescada: “Eu cá gosto muito do interior porque é deserto... Tem pouca gente... Assim é que é bom!” Incomodados, olhámo-nos em silêncio. Até que um dos presentes, com a frontalidade que se reconhece nos bons alentejanos, resolveu responder ao indivíduo: “Já cá faltava a fina-flor do entulho… O senhor diz isso porque é um gajo amanhado, com dinheiro para ir à capital a bons médicos, para encontrar por aquelas bandas o que aqui falta. E quem cá mora?” O forasteiro não retorquiu – nem poderia retorquir. E a conversa continuou, tornando-o transparente, sobre as causas do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de que o alentejano, quando perde a dignidade, mata-se, sacrifica-se. E quanta dignidade lhe têm retirado, não só os forasteiros que “gostam muito do Alentejo”, mas só sabem espezinhar quem por lá habita, mas também os nativos que fomentam uma existência pequenina e dependente, de modo a exercerem sem oposição o seu caciquismo político e económico e a tornarem invisível a sua mediocridade social e cultural.

Tenho recordado nos últimos tempos a conversa do tal hippie fora de prazo ao confrontar-me com tantas medidas que os últimos governos têm vindo a publicar em Diário da República. Quem as lê de um condomínio de luxo decerto fica agradado. Encerrar escolas é bom, segundo afirmam, pois colocará todos os alunos num só edifício com condições melhoradas e mandará para casa mais uns funcionários públicos inúteis. Obrigar homens e mulheres, idosos, a deslocarem-se a um centro de saúde fora da sua área de residência pode ser positivo, pois terão cuidados de saúde que na sua terra não teriam. Obrigar as raianas a terem os seus filhos em maternidades espanholas é porreiro, pois assim ficarão de uma vez por todas com a cidadania espanhola, que já vão adoptando quando preferem abastecer-se de combustível do outro lado da fronteira. Extinguir freguesias rurais está bem visto; para que quer aquela gente perto de si uma autarquia, se a podem ter a trinta-quarenta quilómetros de distância...? Fechar repartições de finanças e tribunais é boa ideia, pois são despesa excessiva para tão poucos eleitores. Quem conhece bem o interior português e outras terras onde tais dislates têm sido cometidos sabe que essas medidas legislativas, concretizadas pelos governos de José Sócrates e Passos Coelho, embora pensadas por um poder ilegítimo nacional e estrangeiro, são uma machadada fatal na dignidade de quem lá vive e, logo, um veneno mortal que aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas portuguesas. Pouco interessa que as pessoas desses concelhos tenham uma carga fiscal idêntica à de um lisboeta, mas sem os mesmos serviços à sua disposição. São cidadãos de segunda ou de terceira, pensam; têm de pagar e calar – ou de emigrar, nem que seja para a cova do cemitério.

São esses os cálculos de quem vê as aldeias e vilas portuguesas apenas como fontes de rendimento. Têm pena quando uma povoação é muito habitada; os empreendimentos turísticos saem mais caros; casitas e terrenos que poderiam custar uns tostões têm um preço justo, o que é francamente um obstáculo ao progresso (de algumas contas na Suíça). Nada lhes importa que as terreolas tenham junta de freguesia, médico, posto de correios, farmácia ou escola, que os centros de saúde possuam atendimento permanente, que haja maternidade, finanças ou tribunal próximos. Aos olhos de quem manda nos governos e ninguém elege, as nossas aldeias são pavilhões de caça ou campos de férias, lugares de passagem que transformam em não-lugares, sem vida, sem nada além de um cenário lavadinho para turista ver.

Os reis dos primeiros tempos da nossa História legislavam no sentido de favorecerem a fixação das populações. Os governantes de hoje fazem o contrário. Primeiro adubaram os caciques locais (que, diligentemente, pela sua passividade, pela sua mediocridade e pelo seu fechamento, fizeram diminuir a população residente), esquecendo os habitantes das nossas vilas e aldeias, não pondo em prática estratégias que contrariassem o êxodo iniciado nos anos ’60 do século passado. Agora, retiram a boa parte dos portugueses condições mínimas de dignidade – para que o esvaziamento se complete.
Não tenhamos dúvidas: muitos citadinos vêem no mundo afastado dos centros de poder uma terra de cafres. Para que os seus negócios dêem o lucro esperado, terão de transformá-lo numa terra devastada, onde habitem apenas servos sem gleba.

segunda-feira, 9 de junho de 2014



INOCULAR O ANTÍDOTO
por Ruy Ventura

            O entretenimento noticioso dos primeiros dias de Junho de 2014 foi marcado, como o leitor bem sabe, pela vitória de uma freira italiana num daqueles concursos de faz-de-conta que iludem por esse ocidente fora centenas ou milhares de aspirantes à fama na música ligeira. Na sua página do Facebook, houve um católico que resolveu qualificar o acontecimento como uma manifestação das técnicas da “nova evangelização”. Não acredito que esse cristão tenha a convicção de que bastam sorrisos, pancadinhas nas costas, cantorias e atitudes levianas para conquistar fiéis. Terá usado a ironia – e fez bem – embora o assunto mereça sobretudo sarcasmo ou a mais veemente reprovação.

            Não gostaria de estar na pele dos pastores de algumas comunidades católicas. Como é bem sabido, entre os militantes sinceros dessa tradição cristã (onde me incluo, como se sabe) há um discreto, mas activo, grupo de pessoas que aí se alojaram para colocarem em prática um aparente paradoxo. Por um lado, promovem nas suas paróquias um novo mau gosto religioso, pressionando os sacerdotes a ornamentarem o espaço cultual e a animarem as celebrações com o que há de pior na qualidade estética. Ou seja, “obrigam” à realização de restauros que destroem ou removem obras de arte valiosas e/ou expressivas, à instalação de cartazes horrendos, à compra de objectos de fancaria e, em consonância, à introdução nas missas e noutros ritos de práticas musicais que são uma das faces da sociedade de consumo, no que ela tem de espectáculo bizarro, grotesco, degradante porque acéfalo e alienante. Trata-se de um caminho fácil, que leva os crentes incautos à penúria cultual e cultural e a destruírem o que lhes resta de pensamento autónomo e poliédrico, aquele que propicia o acolhimento de uma dimensão sobrenatural da realidade e conduz à dignificação social e ao impulso criador e colaborante com Deus. Pelo outro lado, difundem sub-repticiamente, empáticos e simpáticos, um fechamento eclesial muito preocupante, retrocesso rejeitado pela Igreja Católica, sobretudo desde o pontificado de são João XXIII. Colaboram, assim, consciente ou inconscientemente, com o “inimigo”, pois mais não fazem do que aplaudir, promover e incentivar as piores práticas do capitalismo selvagem, tão frontalmente denunciado pelo papa Francisco, aquele que manipula as mentes a toda a hora para melhor as dominar, aquele que distingue as pessoas em função do seu poder económico e social, desprezando as periferias, rendendo-se ao dinheiro e às suas seduções divisoras, ou seja, diabólicas. Não se trata de promover a cultura tradicional dos povos, tão rica de espiritualidade e inconformismo, mas de rebaixar o culto introduzindo nele elementos (falsamente chamados “populares”) que só distraem, perturbam e afastam da Cidade de Deus.

            Como contraponto a essa euforia em torno de alguém que resolveu passar, ainda que momentaneamente, “do convento para o cabaré”, não para converter mas para se tornar visível (Deus lhe perdoe, talvez não soubesse o que fazia…), euforia promovida pela comunicação social ao serviço do poder económico-financeiro (por quem haveria de ser?), recordei momentos inolvidáveis. Lembrei quanto me emocionou em Grândola o Mistério do Cristo dos Gascões, drama sacro medieval vindo de Segóvia na Semana Santa deste ano e chegado às terras do litoral alentejano pela mão do justamente reconhecido Festival Terras Sem Sombra. Fui ainda reler a entrevista recentemente dada por Rui Vieira Nery ao nº. 8 da Invenire.

            Para todos os crentes, a mais alta música litúrgica e sacra (para não dizer, toda a elevada criação artística), produzida ao longo de mais de mil anos de história, teve na sua génese uma assistência do Espírito Santo. Interessam pouco as filiações religiosas dos compositores. O que mais vale é essa música, não erudita mas ascensional (na medida em que nos leva ao Alto), que nos faz subir àquele Infinito a que os crentes chamam Deus. Nessa comunicação com o Inefável, ou seja, nesse contacto com a Altitude Suprema, nós próprios transcendemos as condicionantes que transformam todos os dias a nossa vida em mera existência.

            Só uma deficiente formação religiosa ou enquistamentos que levaram a um empobrecimento espiritual e cultural poderão levar tantos católicos (clérigos e leigos) a desejar ouvir nas suas igrejas algo que até pode ser espectacular (ou seja, alienante), mas nunca estimulará a espiritualidade no que ela tem de amor a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Substituir a verdadeira música sacra, antiga ou contemporânea, tradicional ou não, por entretenimento nos arredores da sacristia é prestar um péssimo serviço aos fiéis, à Igreja, à sociedade e a Deus, compactuando com o que há de mais boçal e rasteiro no nosso tempo.

            Por isso considero de tanta valia o trabalho desenvolvido por algumas instituições, como a comunidade ecuménica de Taizé, a diocese de Beja – que neste ano organiza pela décima vez oFestival Terras Sem Sombra – ou o Seminário de São Paulo de Almada. Num tempo em que a todo o momento e por todos os meios se injecta nas nossas mentes o veneno do relativismo e do rebaixamento moral, ético, social e cultural, as suas iniciativas vão inoculando num número crescente de pessoas o antídoto que talvez as possa salvar. Não é o mesmo ouvir em contexto religioso Plummer, frei Manuel Cardoso, Bartok, Bach, Feldman, Mozart, Messiaen ou um coral alentejano e aguentar no mesmo espaço uma cantoria mal amanhada, vinda da terra dos “fenómenos” ou dos seus arredores, mesmo que sejam no Brasil...

            Como afirma Rui Vieira Nery na entrevista supracitada, não “se pode, na liturgia, competir com a indústria de entretenimento, utilizando os mesmos instrumentos e a mesma estética”, porque aí – até quando? pergunto eu – “Nunca teremos fumos, bailarinas, cenários, foguetes e luzes”. Apimbalhar as celebrações, tirando delas o mistério que é a sua essência e as justifica, nunca será aproximar os fiéis da Igreja. É participar no envenenamento dos crentes ou assistentes, que já muito andam envenenados – e por isso reivindicam a toda a hora o que nunca lhes deverá ou deveria ser dado. Volto ao testemunho crente do musicólogo: “Uma coisa é investir na comunicação e na partilha daquilo que se faz na Igreja, outra é a ideia de seguir o gosto dominante das indústrias culturais massificadas”.

            Para que não se diga que defendo o “elitismo” – a chapada do costume, quando surge alguém a defender a elevação cultural, dentro e fora da Igreja, como o melhor método de resistência contra a alienação, tão estupidificante, do nosso tempo –, além do referido festival, que vivamente aconselho, recordo dois CDs. São exemplos do que se pode fazer e difundir, sem nunca ceder à promoção da penúria mental. Um deles intitula-se Cânticos da Tarde e da Manhã, cantado por Teresa Salgueiro e editado pelo Seminário de Almada, na diocese de Setúbal, a partir de uma iniciativa do padre Rodrigo Mendes. Ouvi-lo não deixa ninguém indiferente… O outro, já clássico, é a colectânea Cânticos Alentejanos, do coro do Carmo de Beja, com direcção artística do padre Cartageno. Aí a tradição mais autêntica casa-se com a espiritualidade aberta e consciente dos alentejanos, daqueles que vêem no firmamento e nas vistas largas da sua planície uma expressão da vastidão da divindade.

             Inocular o antídoto é fazer como em Beja, Almada e noutros lugares que marcam a diferença: acolher e divulgar o tesouro de um património musical imenso, aceitar e incentivar o que há de melhor no “erudito” e no “popular/tradicional”, abrir as portas à criação contemporânea, desde que ela corresponda a padrões de qualidade inegociáveis e leve à conservação e a um mais atento usufruto do depósito da fé. Quem diz na música, diz noutras dimensões da vida eclesial, porque não há culto sem cultura e, já agora, cultura sem culto “em espírito e verdade”.