GENEROSIDADE
Foi
com sobressalto e desgosto que há poucas semanas me confrontei com o fecho de
um dos meus santuários lisboetas, a “Barateira”. Levada pela malvada “crise” e
por jogos que nem vale a pena qualificar, tão sujos são, este alfarrabista da
nossa capital era, em simultâneo, um templo da leitura e uma câmara do tesouro
– para quem tivesse a paciência e a persistência de demandar nas suas estantes
as mais valiosas preciosidades que o homem foi escrevendo e editando. Era um
lugar generoso. Pequenas quantias monetárias geravam, se o Espírito assim queria,
momentos inesquecíveis de prazer e de elevação.
Sempre
que posso, perco-me pelos alfarrabistas e por feiras de velharias, ao encontro
de livros importantes, raros ou esquecidos pelo tempo. Tenho para mim que
alguns livros antigos ou em segunda mão procuram os seus próprios donos. Não
somos nós que vamos na sua demanda, são eles que esperam por nós – aguardando a
nossa visita e a nossa atenção apaixonada.
Tenho
tido momentos felizes na minha paixão bibliófila. Entre os dias que recordarei
até ao fim da minha existência, estão vários que foram felizes porque nas suas
horas tive a honra de encontrar e poder levar para casa obras que (tenho a
certeza) há muito me esperavam. Seria difícil listar todos os livros que
consolaram os meus dias, todos esses momentos de encontro. A título de exemplo
posso citar, contudo, o primeiro livro do poeta portalegrense Carlos Garcia de
Castro, editado em 1955, que pertenceu ao enorme pintor surrealista Manuel D’
Assumpção, a primeira edição de Claridades
do Sul, de Gomes Leal, ou a antologia do Prémio Almeida Garrett, publicada
em 1957.
Esta
última colectânea é um livro exemplar por razões que passo a expor. Atribuído
pelo Ateneu Comercial do Porto em 1954, só três anos mais tarde a antologia do
Prémio Almeida Garrett viu a luz do dia. O júri foi constituído por nomes que
dispensam apresentações: Afonso Duarte, João Gaspar Simões, Paulo Quintela e
Vitorino Nemésio. Foram 103 as obras concorrentes. O galardão coube a uma obra
de Miguel Torga.
Neste nome reside a
mais importante dimensão desta colectânea. Por estranho que pareça, não integra
um único poema do autor de Poemas
Ibéricos, uma vez que a obra teve edição autónoma. Não foi paga,
como seria de esperar, pelo Ateneu Comercial do Porto, que promovera o prémio. Foi
paga pelo primeiro premiado que, tendo conhecimento da alta qualidade de
algumas das obras que haviam sido preteridas em favor do seu livro, decidiu
abdicar do valor monetário que lhe era devido para proporcionar aos seus
colegas de letras (jovens ainda e inéditos em livro) as alegrias da publicação.
(É caso para perguntar: quantos poetas “medalhados” do nosso tempo teriam hoje
coragem para manifestarem uma tamanha generosidade?)
A
história terminaria aqui se os autores antologiados no livro que veio acolher-se
à minha biblioteca fossem hoje ilustres desconhecidos. Acontece que, entre a
vintena de poetas aí incluídos, constam alguns poetas hoje indispensáveis no
edifício da Poesia Portuguesa Contemporânea. Entre eles, destacam-se Fernando
Echevarría, Cristovam Pavia, António Gedeão e, além deles, Fernando Vieira, José
Carlos Ary dos Santos (que autografa o livro) e alguns outros, com obra
estimável.
Estes
autores não tinham, em 1954, qualquer livro publicado. Tivesse Miguel Torga
guardado o dinheiro no bolso, banqueteando-se com ele, e qual teria sido o
destino da obra destes escritores, cuja poesia hoje reconhecemos?
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