PALAVRAS QUE PERTURBAM
por Ruy Ventura
“[…]
quando o Filho do Homem voltar,
encontrará
a fé sobre a terra?”
Jesus de Nazaré (Lucas, 18: 8)
No Natal
de 1969 um jovem professor de Teologia, com pouco mais de quarenta anos,
proferiu na Emissora Radiofónica de Hessis uma conferência que, hoje, podemos
considerar profética. A prelecção intitulava-se “Que aspecto será o da Igreja no ano 2000?” e, a dado passo,
afirmava:
“Da crise de hoje […] nascerá amanhã uma
Igreja que terá perdido muito. Tornar-se-á mais pequena, terá em larga medida
de recomeçar tudo de novo. Essa Igreja não vai poder encher muitos dos
edifícios que construiu quando a conjuntura era favorável. Com a perda do
número de seguidores, perderá também muitos dos seus privilégios na sociedade.
Terá de se apresentar de modo muito mais forte do que até aqui, como uma
comunidade de voluntariado, a que só se pode aceder por decisão. Enquanto
pequena sociedade, vai exigir de modo muito mais marcante a iniciativa dos seus
membros. […] Será uma Igreja interiorizada […]. Não terá uma vida fácil. Porque
este processo de cristalização e clarificação custar-lhe-á alguns bons
colaboradores. Torná-la-á pobre e fará dela uma Igreja dos pequeninos. O
processo será tanto mais difícil por a Igreja ter de eliminar tanto a tacanhez
sectária como a bravata daqueles que só querem fazer a sua vontade. […]
preparam[-se] tempos muito difíceis para a Igreja. § A autêntica crise mal
começou. Deve-se contar com grandes abalos […]”
A
autêntica crise mal começara… É possível que o autor destes trechos, retirados
de um livro intitulado “Fé e Futuro”,
tenha pensado na sua afirmação quando, em Abril de 2005, lhe coube dirigir em
Roma a Via Sacra de Sexta-Feira Santa. Meditando a partir da terceira queda de
Jesus Cristo a caminho do Calvário, proferiu palavras duras, cortantes:
“Tantas vezes celebramos apenas nós próprios,
sem nos darmos conta sequer d’ Ele! Quantas vezes se contorce e abusa da sua
Palavra! Quão pouca fé existe em tantas teorias, quantas palavras vazias!
Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio,
deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba e auto-suficiência. […]
Senhor, muitas vezes a vossa Igreja parece-nos uma barca que está para afundar,
uma barca que mete água por todos os lados. […] O vestido e o rosto tão sujos
da vossa Igreja horrorizam-nos. Mas somos nós mesmos que os sujamos! Somos nós
mesmos que Vos traímos sempre, depois de todas as nossas grandes palavras, os
nossos grandes gestos. […]”
O homem
que tal disse era Joseph Ratzinger. Dias depois sucederia a João Paulo II como
papa e escolheria, significativamente, o nome de Bento. O pastor que pensou e
difundiu o diagnóstico que nos perturba só poderia confirmá-lo e aprofundá-lo
em 2013, dias depois de anunciar “urbi et
orbi” a sua renúncia ao sólio pontifício por razões que, totalmente, só ele
e Deus conhecerão. Na homilia de Quarta-Feira de Cinzas sublinharia quão
importante é “o testemunho de fé e de
vida cristã de cada um de nós e das nossas comunidades para manifestar o rosto
da Igreja; rosto este que, às vezes, fica deturpado.” E explicou: “Penso de modo particular nas culpas contra a
unidade da Igreja, nas divisões no corpo eclesial. Viver a Quaresma numa
comunhão eclesial mais intensa e palpável, superando individualismos e
rivalidades, é um sinal humilde e precioso para aqueles que estão longe da fé
ou são indiferentes.”
Todas
estas palavras, dirão, têm apenas interesse para os católicos que, agora,
esperam a eleição do seu novo líder religioso, depois da decisão inesperada e
raríssima de um alemão que decidiu abdicar do lugar em que fora investido,
dizem, pelo Espírito Santo. Assim não creio. Se o nosso objectivo é trabalharmos
para que se diluam – como propôs Bento XVI – as relações de tolerância mútua em
benefício da construção de uma comunidade de seres benevolentes, ou seja, se
queremos transformar uma sociedade de indiferença entre os seres num mundo
centrado no bem de cada ser humano, estas palavras não podem deixar-nos
indiferentes – se olharmos para quanto nos rodeia de uma perspectiva sagrada e
sacralizadora, seja qual for a nossa postura perante Deus.
Perturbado
pelas palavras que transcrevi e por quanto têm de verdadeiro neste mundo em que
tudo vale e tem o mesmo valor, dei por mim a pensar num dos célebres frescos de
Giotto di Bondone, existentes na Basílica de São Francisco, em Assis. Do lado
direito, temos um papa (Inocêncio III, 1198-1216) que sonha. Do outro, a
representação do sonho: São Francisco impede a derrocada de uma catedral, ou
seja, da Igreja por inteiro. Eram tempos conturbados aqueles… como os nossos. A
santidade de Francisco impediu a queda. E agora?
Tentando
aliviar a perturbação, peguei num livrinho do filósofo russo Nicolai Berdiaeff,
cristão ortodoxo defensor da unidade das Igrejas, perseguido pelos comunistas,
leitor e admirador das obras do nosso Teixeira de Pascoaes. Nesse opúsculo
intitulado “Da Dignidade do Cristianismo
e da Indignidade dos Cristãos” reproduz uma história que me dá que pensar
sempre que a leio. Saiu da mão de Boccacio, escritor medieval italiano.
Um
cristão tentava há muito converter um amigo judeu. O baptismo do israelita
estava à porta. Quis contudo, antes de dar o passo definitivo, ir a Roma
apreciar a conduta da Cúria e do pontífice. O católico, que tanto trabalhara,
viu as suas expectativas irem por água abaixo. “O judeu partiu e constatou a hipocrisia, a
depravação, a corrupção, a cupidez que reinavam nessa época na corte do Papa
entre o clero romano. Voltou – e o seu amigo cristão logo lhe perguntou com
inquietação que impressão trazia de Roma. A resposta, com um sentido muito
profundo, foi das mais inesperadas: se a fé cristã nunca foi abalada por todos
os escândalos e abominações que havia visto em Roma e se, apesar de tudo, ainda
se fortificava, ela deveria ser a verdadeira fé. O israelita tornou-se assim
cristão.”
É
preciso separar, nestes tempos de “fulanização”,
a exigente doutrina nascida nas e das palavras de Jesus Cristo do modo impuro, fanático,
interesseiro e/ou depravado com que muitos cristãos a vivem, distinguir o
Cristianismo (nas suas diferentes vias) da hipocrisia anticristã daqueles que
apontam o argueiro mas escondem a tranca que têm sobre a cabeça. Sabendo que os
cristãos vivem em direcção a uma meta de perfeição, sem serem seres perfeitos,
é preciso denunciar aqueles que, diabolicamente talvez, querem uma Igreja
tacanha de “puros” e fecham portas
quem nem eles próprios sabem abrir. Mas, ao mesmo tempo, devemos impedir o
crescimento de um Cristianismo de trazer por casa, à la carte, sem criação, sem altitude, sem mistério, sem
espiritualidade, sem sacralidade e sem compaixão.
Berdiaeff
sublinha: “Não é culpa de Cristo se a sua
verdade não se cumpre nem se realiza na vida. Cristo não é responsável se os
Seus mandamentos são espezinhados.” O próximo papa, com as suas
insuficiências e com humildade, deve contribuir, como Francisco de Assis, para
que o Cristianismo se mantenha de pé, como proposta de elevação e salvação do
ser humano. É a sua tarefa – e a tarefa de todos os cristãos e homens de boa
vontade.