quarta-feira, 24 de outubro de 2012


A NORMA E A CRISE
Não é nova a teoria de que tudo, no mundo, oscila entre a norma e a crise. Podemos ver neste movimento a afirmação de Eça de Queirós, segundo a qual a História é uma velhota que se repete sem cessar, ou essoutra visão do devir humano em que os acontecimentos surgem sob o símbolo do pêndulo. Ou seja, periodicamente há uma repetição modificada de convulsões e pacificações, de disforias e euforias, de depressões e acalmias. Houve mesmo quem, a partir desta concepção da História, teorizasse o percurso das revoluções científicas, sublinhando que a passagem de uma norma a outra norma (ou seja, de um paradigma a outro paradigma) só se faz através de períodos mais ou menos dilatados de crise e de intensa discussão.
Se olharmos atentamente, sem paixão mas com interesse, para tudo quanto se vem passando no mundo ocidental, sobretudo nos países sujeitos a uma penúria financeira (entre os quais, Portugal), não é difícil perceber que se inicia, agora de forma generalizada, um período de transição nas relações sociais, políticas e económicas. O paradigma anterior estilhaçou. O que era normal deixou de o ser. Há muito que vozes autorizadas e clarividentes o vinham anunciando, algumas delas há mais de um século. Mas foi preciso que a norma vigente – suportada não pela dignidade humana, mas pelo império do dinheiro, dos jogos financeiros e das suas diabólicas seduções e intenções – rebentasse, para que todos nos movimentássemos e começássemos a agir.
É esta a crise – e não apenas a falta de dinheiro nas nossas contas bancárias. Há quem lhe chame “crise de valores” – e não está mal visto. Creio que ela não cessará enquanto os seres humanos não mudarem por completo as suas relações com a Natureza, com a Memória, com os seus semelhantes, com o Poder político e social, com o Trabalho, com a Educação, com a Saúde, com o dinheiro, com tudo quando os rodeia, os eleva e os limita.
A maioria dos nossos concidadãos, por enquanto, ainda reivindica apenas uma “devolução”, a devolução de um tempo dourado em que não faltava numerário (próprio ou emprestado) para tudo e mais alguma coisa. Mas, a pouco e pouco, vão-se ouvindo frases que desejam uma mudança verdadeira e completa. Infelizmente, a miopia, a falta de conhecimento da História ou a maldade leva muitos dos autores dessas reivindicações a misturarem realidade com ficção, a desejarem (consciente ou inconscientemente) o regresso a “soluções” que, de forma directa ou indirecta, deram nascimento a algumas das maiores monstruosidades políticas e sociais dos últimos cento e cinquenta anos. Lembro o comunismo nas suas várias expressões localizadas e, obviamente, o nazismo e outras formas de poder tirânico mais ou menos evidentes. É preciso ter muito cuidado neste tempo em que “Ninguém sabe que coisa quer. / Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem.” (Fernando Pessoa).
Angustia-nos termos consciência de que este período de crise ou de transição poderá ser mais longo do que se espera. Mais tarde ou mais cedo, afectará, assim o creio, todos os países que têm vivido sob o mesmo paradigma (mesmo aqueles que agora se apresentam como “credores”), norma em que o ter estrangulou o ser. A resistência deve ser feita tendo em conta a memória ou lembrança do que nos antecedeu e cessou e um olhar virado para o futuro, esperançoso. Se necessário, não deveremos ter medo de “abdicar” para sermos outra vez “reis” do nosso destino. Talvez tenhamos de admitir as palavras de Teixeira de Pascoaes, ditas em 1925: “[…] estamos numa época caótica e de transição, de que há-de nascer uma nova harmonia social, para além de quaisquer formas de governo, que não me interessam. […] É preciso […] que se dê uma grande renascimento religioso, porque só pela religião, pela Fé em Deus, se pode redimir a Humanidade.

 

 
PALAVRAS QUE FAZEM VER

Projectos de investigação diferentes, que nos últimos tempos me têm ocupado, levaram-me ao encontro de vozes e pensamentos diversos, mas confluentes. Têm todos eles um centro – a percepção das relações sociais e políticas em tempos de crise e de desigualdade entre os homens.
Há cerca de dois mil anos, alguém escreveu numa carta: “[…] ricos, chorai em altos gritos por causa das desgraças que virão sobre vós. As vossas riquezas estão podres, e as vossas vestes comidas pela traça. […] Olhai que o salário que não pagastes aos trabalhadores que ceifaram os vossos campos está a clamar; e os clamores dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor do universo! Tendes vivido na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os vossos apetites… para o dia da matança!
No século XII, houve por sua vez quem dissesse sem hesitações nem medos: “Os ricos e poderosos roubam aos pobres os seus haveres, adquiridos com suor e lágrimas. Ainda por cima, chamam-lhes seus vilãos, quando eles é que são vilãos do diabo. […] O rico deste mundo perverte a justiça, roubando os pobres ou não lhes dando o que é seu.” E acrescenta com igual ousadia e firmeza: “É sacrilégio dar a pertença dos pobres a quem o não é. Se dás a um parente, deves dar não por ser parente mas por ser pobre. […] Não dês, portanto, sangue ao sangue, mas dá ao peregrino e ao pobre.
Já muito mais perto de nós, um dos gigantes da nossa literatura portuguesa e da literatura de qualquer parte do mundo afirmou: “[…] um novo e inesperado actor calcou o tablado. […] Ao pé dele tudo é mesquinho: homens de estado, negociações, guerreiros e príncipes. Salvou-nos. E logo que nos salvou sumiu-se na mesma estúpida resignação […]. Mas nem tudo se perde: alguma coisa de amargo – dúvida ou cólera – ficou na consciência colectiva, que há-de desentranhar-se no futuro em novos gritos. Esperemos o que a noite vai gerando…
Acrescento a estas erupções verbais, tão oportunas, as palavras ditas por um homem do povo mais humilde, ou seja, mais próximo do húmus, da terra fértil: “Quem trabalha e mata a fome / Não come o pão de ninguém; / Mas quem não trabalha e come, / Come sempre o pão de alguém!” “Entre grandes e pequenos / Ficávamos quase iguais, / Dando a uns um pouco menos / E a outros um pouco mais.” “Vós que lá do vosso império / Prometeis um mundo novo, / Calai-vos, que pode o povo / Q’rer um mundo novo a sério.
Que interessa que estes textos tenham sido escritos em momentos distintos da História da Humanidade? É importante sabermos que eles saíram da mão e/ou do pensamento de Tiago-o-Justo, Santo António de Lisboa, Raul Brandão ou António Aleixo? Parece-me que não. Importa a sua justiça, a clarividência que nos dão e a mudança de atitudes que possam propor ou proporcionar. Assim eles fiquem na nossa memória, na memória de quem os lê, e empurrem para aquilo que interessa nestes tempos conturbados, de transição: a mudança e o avanço.