terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Castelo de Noudar

A MAIS RAIANA
DAS VILAS PORTUGUESAS



Muito pouco conhecem os portugueses da vila de Barrancos, uma das mais remotas do território nacional, sede de concelho com uma única freguesia. A maior parte de nós recorda esse pequeno pedaço de Portugal apenas pelos touros de morte e pelos excelentes enchidos de porco preto, associados a vagos ecos de um português diferente que por lá se fala.
Durante anos e anos o conhecimento foi mesmo mais restrito. Limitava-se à acesa polémica entre os chamados “defensores dos direitos dos animais” e a população local, tendo como centro a realização anual de corridas de touros em que o animal morria às mãos do bandarilheiro, contrariando o estabelecido na lei portuguesa. Era já uma tradição lusa assistir pela televisão ao folclore das forças policiais tentando impedir, sem sucesso, o acontecimento festivo, aos garridos e (por vezes) descabelados protestos dos protectores dos bichos e ao manguito contumaz dos barranquenhos que – depois de muita resistência – lá conseguiram que a Assembleia da República do seu país consagrasse no Diário do Governo a sua excepção cultural. Fizeram bem os políticos? Fizeram mal? Matar os touros no meio da arena em vez de abatê-los no matadouro será pior ou melhor? Cada um responda na sua consciência. (Gostaria apenas que alguém me explicasse as razões ponderosas que autorizam uma hierarquia entre os animais. Serão um touro, um gato, um cão ou uma galinha mais importantes do que um lacrau, um piolho, um caracol ou um percevejo? Isto é, contudo, assunto para outra crónica – talvez dedicada ao tema da hipocrisia… Adiante.)
Voltando a Barrancos. Finda a refrega, resta aos portugueses mais distraídos, como lembrança desse município, o sabor dos seus chouriços – delicioso como o de poucos. Reconheçamos que é injusto. (Mas nisto de carnes fumadas, cada um vence com a sua; é melhor não alimentar bairrismos… Eu, por exemplo, pelo-me por morcelas e cacholeiras de Portalegre, minha terra natal, mas sem defesas assanhadas…)
A pequena vila com escassos milhares de habitantes merece que a lembrem de uma forma mais poliédrica. Nomeadamente como a mais raiana de todas as vilas portuguesas. Ao seu lado talvez, apenas, a cidade de Miranda do Douro, com o seu mirandês descendente do leonês, agora também língua oficial com direito a ensino público.
Em Barrancos, aos touros de morte e a uma ligação umbilical com os seus vizinhos espanhóis, associa-se um falar em que se misturam marcas do português falado no Baixo Alentejo com as do castelhano falado para além da fronteira. Estudado com sabedoria (embora com limitações) pelo investigador José Leite de Vasconcellos no seu livro Filologia Barranquenha (1955), não pode considerar-se – segundo afirma Lindley Cintra – um dialecto autónomo, mas é ainda assim uma das mais concretas manifestações da cultura raiana (tecido muito matizado, no qual os séculos e os homens que os povoaram foram entrançando fios diversos, com cores diferentes, mas complementares e (hoje) indissociáveis).
Será a peculiar – e polémica – tauromaquia barranquenha outra coisa além de uma das faces dessa manta colorida, feita de muitos tecidos recortados e recompostos? Se a praça onde decorre o espectáculo, edificada com barrotes de madeira no largo principal da vila, faz lembrar aquelas onde decorrem as “ferras” ou “touradas à vara larga” por esse Alentejo fora, a largada das reses e a sua lide a pé lembram tradições de Espanha. Quer apreciemos ou não o ritual sangrento, traz-nos à memória raízes milenares, de uma época em que havia uma cultura agrária com touros e deuses ctónicos que era preciso vencer para afirmar a força da humanidade, uma cultura cujos vestígios correm hoje o sério risco de desaparecer enquanto manifestações autênticas.
Por muitos motivos (uns positivos, outros nem tanto) podemos afirmar que essa cunha portuguesa em território extremenho, vigiada pelo abandonado castelo de Noudar e protegida por uma santa com resplendor à castelhana, não é nem de Portugal nem de Espanha. Apenas uma das eminências desse território peninsular agreste, mas misterioso, chamado “Raia”.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

MEMÓRIAS DE UM POETA COMOVIDO

         Artur Domingos Garcia era um poeta humilde. Humilde porque durante a sua existência esteve sempre próximo do húmus, da terra. Humilde porque escreveu sem quaisquer pretensões (ao contrários de muitos que, hoje, primeiro querem publicar e só depois criar romance ou poesia). Desejou apenas deixar aos seus descendentes o registo simples de alguns factos da sua vida, das existências que presenciou, da sua maneira de olhar o mundo.
         Foi através de uma sua bisneta que tomei contacto com o caderninho onde registou os seus textos. Alexandra Costa, então minha aluna na Escola Superior de Educação de Portalegre na cadeira de Literatura Oral e Tradicional, que eu então leccionava, trouxe um dia para uma das sessões o pequeno volume onde Artur Domingos Garcia registou ao longo dos anos o que ia escrevendo. Constituído por vinte e oito folhas azuis pautadas, intitulou-o (corrijo a ortografia) Dicionário de uma Família Pobre de Pai Para Filhos.
         O autor, nascido a 27 de Fevereiro de 1901 em Gáfete (no concelho do Crato), passou grande parte da sua vida em Benavila (Avis), localidade onde veio a falecer no dia 22 de Julho de 1992.  Sabia escrever, mas com muitas dificuldades, compreensíveis, tratando-se de um trabalhador rural. Não obstante, devemos integrá-lo no domínio da Poesia Oral ou Tradicionalista (a que alguns erradamente chamam “popular”).
         Emprestado o caderninho, fotocopiei-o com autorização da família. Li-o, depois, com alguma emoção – sentimento que não pude evitar perante a conservação de memórias e de visões do mundo, levada a cabo por um homem simples que tão pouco desejou para si.
         Artur Domingos Garcia auto-intitula-se “poeta comovido” num dos seus textos.  Comovido guardo eu agora esta verdadeira relíquia – que aqui trago ao conhecimento dos leitores/ouvintes.
         As primeiras páginas do manuscrito são em prosa. Relatam alguns episódios da vida pessoal e conjugal do poeta e, ainda, acontecimentos memoráveis da época em que viveu, como o ciclone de 15 de Fevereiro de 1941. Dirigindo-se à filha, sua destinatária, escreve: “Este ano [...] foi um ano terrível para os que se encontravam vivos; não nos bastava uma Guerra Europeia prestes a ser mundial se não agora mais uma guerra natural”. O último registo foi escrito em 25/11/1982, data em que chora a morte de sua mulher.
         A parte poética apresenta temas variados. Desde os “Frutos dos 25 de Abril”, a  relatos de mortes e suicídios, passando por factos da história de Benavila, pela enumeração dos heróis e anti-heróis de Portugal, por críticas aos que instrumentalizam a figura de Cristo, etc.. – tudo vertido em modelos de versificação tradicionais. De entre os poemas deste autor que se apresenta sempre como um democrata (situação perigosa numa época em que estes eram perseguidos), revestem especial interesse as suas reflexões sobre a II Guerra Mundial, que apresentou em duas composições (“artes de poesia”, como lhes chamava). Os seus ideais de igualdade social e de fraternidade universal estão bem patentes neste conjunto de sextilhas (sem dúvida acutilantes e até polémicas) escritas em Abril de 1943:

         Com repúblicas e monarquias,
         Assim vamos passando os dias,
         Vivendo assim iludidos.
         Em guerra vamos passando,
         Por baixo do fogo chorando,
         Uns já mortos, outros feridos.

         Essas grandes democracias
         Combatem todos os dias
         Contra esses ditadores,
         Porque na verdade porém
         Deles só guerra nos vem,
         Fome, lágrimas e dores.

         Ó representantes do mundo
         Sabeis que o mar no seu fundo
         Pode com toda a riqueza.
         Pela guerra é tudo devorado,
         Tanto civil como soldado,
         Morre tudo, é uma tristeza.

         […]

         Mal empregada Ciência
         A custo e com paciência
         Que hoje se está cultivando.
         Só se emprega em maquinismo
         Pra nos trazer o terrorismo
         Para os inocentes ir matando.

         Essas grandes construções
         Tanto em barcos como aviões,
         Não tem fim o seu limite.
         Afinal o que é que fazem [?]
         A morte à gente nos trazem,
         Construção de dinamite.

         Maldita guerra afinal,
         Que se torna universal.
         Achando pouco a Europa,
         Por toda a parte se grita,
         Só se vê gente aflita,
         Tanto civis como tropa.

         Nas aldeias devastadas
         Vêem-se mães, coitadas,
         Com os filhinhos a fugir.
         Atrás delas o vil algoz,
         Com instintos de faraós,
         Só para matar e ferir.

         […]

         Acabai com o armamento
         Todas as nações ao mesmo tempo,
         Sejam iguais as bandeiras.
         Tenhamos uma amizade,
         Com toda [a] solidariedade
         Com os irmãos de Além Fronteiras.

         Esse grupo de vilões,
         Ministros e patrões,
         Esses que nada produzem.
         Com a sua instituição,
         Sem alma nem coração,
         À miséria nos conduzem.

         A revolução social
         Há-de ser universal,
         Está próximo esse dia.
         Traz consigo a igualdade
         Com toda a capacidade
         P’r’ acabar com a burguesia.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

DISCRETOS MENSAGEIROS

         Não seria o que sou hoje se não tivesse iniciado a minha actividade como escritor na comunicação social local e regional. Aí contactei com a importância da humildade no diálogo com os ouvintes e os leitores. Tornei sólida a minha convicção de que essas rádios e esses jornais estão entre os mais discretos (e os mais relevantes) mensageiros        de uma informação que se aproxima das pessoas e de uma parcela fundamental da Cultura do nosso país. Se outro valor não tivessem, bastar-lhes-ia serem talvez o único instrumento que vai dignificando os cidadãos mais esquecidos da nossa sociedade, essa "sociedade da informação" que informa pouco, entretém muito e manipula demais.
         É verdade que muita dessa comunicação social vive dentro de limites: limites no espaço da sua difusão, limites temporais e económicos de quem os põe de pé mês após mês, semana após semana, dia após dia, limites de quem procura dentro deles um equilíbrio local (sempre instável), em comunidades humanas quantas vezes fechadas, dominadas por caciques sinistros ou apenas ridículos, na procura (nem sempre conseguida) de uma informação regional não provinciana. Alguma dela chega a ser sufocada por interesses obscuros, movidos por gente muito duvidosa que procura transformar a imprensa escrita e falada em instrumento de poder, de autoritarismo e/ou de manipulação ideológica, em veículo de inveja, de mediocridade, de vingança e/ou de chantagem. Outros órgãos há, contudo, que são autênticos exemplos de heroísmo cívico, resistindo com todas as forças de quem os produz ao assalto anti-democrático e anti-ético de alguns figurantes que utilizam como arma de arremesso social a legitimação popular emanada de eleições, que tentam burlar uns e outros apresentando-se com uma pele que não lhes pertence, que se dizem defensores de uma paz (podre) que esconde apenas violência interior e cobardia. Indivíduos que usam esses meios para camuflarem as suas reais intenções: calar vozes incómodas, alimentar clientelas políticas e de outra índole, acabar com a qualidade para que a sua mediocridade nunca se revele, estupidificar para que a cidadania não passe dum chavão – e assim possam saciar a sua sede de domínio.
         Por tudo isto considero tanto a comunicação regional e local, pois tenho como certo e inegável o seu papel de discreta mensageira – veículo privilegiado de comunicação entre os membros de uma comunidade e desta com o exterior, edifício cujos pilares conseguem ligar à terra (ao húmus materno, humilde e religador) quantos nela residem ou quantos dela partiram em busca de outra dignidade, retrato-memória de um tempo local(izado), de uma identidade enraizada – "uma memória qualificada de um tempo e de um modo de viver", para utilizar a expressão feliz do poeta José do Carmo Francisco.
         Isto anda tudo ligado – dizia Eduardo Guerra Carneiro... Num mundo consumista em que os vigaristas de várias espécies não estão em vias de extinção, mas mostram sinais de infestação, num tempo em que a comunicação social se aproxima do inconcebível – contra a Ética e a Cidadania, a favor da chantagem e da destruição, procurando audiências a todo custo, nem que para isso seja preciso dar cabo da dignidade do Homem pondo em prática uma ditadura encapotada –, os jornais e as rádios regionais devem ser cada vez mais instâncias de qualidade e de dignidade. Concretizam assim uma missão: aproximar a informação do cidadão, não para o apagar na sua individualidade mas para o elevar; levar à mesa dos portugueses a verdadeira Cultura, aquela que ilumina e abre horizontes; estimular a criatividade individual e colectiva; levar ao crescimento espiritual; promover a liberdade de pensamento e de expressão; ajudar a construir – com estas e outras pedras angulares - uma sociedade justa e democrática.