segunda-feira, 30 de junho de 2014


A ARTE DE DESERTIFICAR

 

Já lá vão mais de dez anos. A conversa estava animada num bar de província e rondava o romance de um escritor alentejano, publicado com sucesso havia pouco tempo. O ficcionista, afável, participava na discussão em pé de igualdade com os seus leitores e, naquela noite quente, o seu livro era sobretudo um ponto de partida para o que mais nos preocupava nas periferias da geografia portuguesa.

Entre cervejas e palavras, fomos reparando num cidadão vestido de negro como um corvo, mal-barbeado e com chapeirão sinistro, refastelado numa poltrona coçada. Ora snob ora exibindo um ar de hippie fora de prazo, ia dizendo das suas sem que alguém se desse ao trabalho de lhe dar troco. Sentindo-se ignorado, resolveu dar o ar da sua graça. Com sotaque lisboeta, no momento em que todos expressavam o seu alarme pela desertificação dos distritos encostados a Espanha, teve a delicadeza de arrotar um sonoro rabo de pescada: “Eu cá gosto muito do interior porque é deserto... Tem pouca gente... Assim é que é bom!” Incomodados, olhámo-nos em silêncio. Até que um dos presentes, com a frontalidade que se reconhece nos bons alentejanos, resolveu responder ao indivíduo: “Já cá faltava a fina-flor do entulho… O senhor diz isso porque é um gajo amanhado, com dinheiro para ir à capital a bons médicos, para encontrar por aquelas bandas o que aqui falta. E quem cá mora?” O forasteiro não retorquiu – nem poderia retorquir. E a conversa continuou, tornando-o transparente, sobre as causas do suicídio no Alentejo. Chegámos à conclusão de que o alentejano, quando perde a dignidade, mata-se, sacrifica-se. E quanta dignidade lhe têm retirado, não só os forasteiros que “gostam muito do Alentejo”, mas só sabem espezinhar quem por lá habita, mas também os nativos que fomentam uma existência pequenina e dependente, de modo a exercerem sem oposição o seu caciquismo político e económico e a tornarem invisível a sua mediocridade social e cultural.

Tenho recordado nos últimos tempos a conversa do tal hippie fora de prazo ao confrontar-me com tantas medidas que os últimos governos têm vindo a publicar em Diário da República. Quem as lê de um condomínio de luxo decerto fica agradado. Encerrar escolas é bom, segundo afirmam, pois colocará todos os alunos num só edifício com condições melhoradas e mandará para casa mais uns funcionários públicos inúteis. Obrigar homens e mulheres, idosos, a deslocarem-se a um centro de saúde fora da sua área de residência pode ser positivo, pois terão cuidados de saúde que na sua terra não teriam. Obrigar as raianas a terem os seus filhos em maternidades espanholas é porreiro, pois assim ficarão de uma vez por todas com a cidadania espanhola, que já vão adoptando quando preferem abastecer-se de combustível do outro lado da fronteira. Extinguir freguesias rurais está bem visto; para que quer aquela gente perto de si uma autarquia, se a podem ter a trinta-quarenta quilómetros de distância...? Fechar repartições de finanças e tribunais é boa ideia, pois são despesa excessiva para tão poucos eleitores. Quem conhece bem o interior português e outras terras onde tais dislates têm sido cometidos sabe que essas medidas legislativas, concretizadas pelos governos de José Sócrates e Passos Coelho, embora pensadas por um poder ilegítimo nacional e estrangeiro, são uma machadada fatal na dignidade de quem lá vive e, logo, um veneno mortal que aniquilará a vida de muitas aldeias e vilas portuguesas. Pouco interessa que as pessoas desses concelhos tenham uma carga fiscal idêntica à de um lisboeta, mas sem os mesmos serviços à sua disposição. São cidadãos de segunda ou de terceira, pensam; têm de pagar e calar – ou de emigrar, nem que seja para a cova do cemitério.

São esses os cálculos de quem vê as aldeias e vilas portuguesas apenas como fontes de rendimento. Têm pena quando uma povoação é muito habitada; os empreendimentos turísticos saem mais caros; casitas e terrenos que poderiam custar uns tostões têm um preço justo, o que é francamente um obstáculo ao progresso (de algumas contas na Suíça). Nada lhes importa que as terreolas tenham junta de freguesia, médico, posto de correios, farmácia ou escola, que os centros de saúde possuam atendimento permanente, que haja maternidade, finanças ou tribunal próximos. Aos olhos de quem manda nos governos e ninguém elege, as nossas aldeias são pavilhões de caça ou campos de férias, lugares de passagem que transformam em não-lugares, sem vida, sem nada além de um cenário lavadinho para turista ver.

Os reis dos primeiros tempos da nossa História legislavam no sentido de favorecerem a fixação das populações. Os governantes de hoje fazem o contrário. Primeiro adubaram os caciques locais (que, diligentemente, pela sua passividade, pela sua mediocridade e pelo seu fechamento, fizeram diminuir a população residente), esquecendo os habitantes das nossas vilas e aldeias, não pondo em prática estratégias que contrariassem o êxodo iniciado nos anos ’60 do século passado. Agora, retiram a boa parte dos portugueses condições mínimas de dignidade – para que o esvaziamento se complete.
Não tenhamos dúvidas: muitos citadinos vêem no mundo afastado dos centros de poder uma terra de cafres. Para que os seus negócios dêem o lucro esperado, terão de transformá-lo numa terra devastada, onde habitem apenas servos sem gleba.

segunda-feira, 9 de junho de 2014



INOCULAR O ANTÍDOTO
por Ruy Ventura

            O entretenimento noticioso dos primeiros dias de Junho de 2014 foi marcado, como o leitor bem sabe, pela vitória de uma freira italiana num daqueles concursos de faz-de-conta que iludem por esse ocidente fora centenas ou milhares de aspirantes à fama na música ligeira. Na sua página do Facebook, houve um católico que resolveu qualificar o acontecimento como uma manifestação das técnicas da “nova evangelização”. Não acredito que esse cristão tenha a convicção de que bastam sorrisos, pancadinhas nas costas, cantorias e atitudes levianas para conquistar fiéis. Terá usado a ironia – e fez bem – embora o assunto mereça sobretudo sarcasmo ou a mais veemente reprovação.

            Não gostaria de estar na pele dos pastores de algumas comunidades católicas. Como é bem sabido, entre os militantes sinceros dessa tradição cristã (onde me incluo, como se sabe) há um discreto, mas activo, grupo de pessoas que aí se alojaram para colocarem em prática um aparente paradoxo. Por um lado, promovem nas suas paróquias um novo mau gosto religioso, pressionando os sacerdotes a ornamentarem o espaço cultual e a animarem as celebrações com o que há de pior na qualidade estética. Ou seja, “obrigam” à realização de restauros que destroem ou removem obras de arte valiosas e/ou expressivas, à instalação de cartazes horrendos, à compra de objectos de fancaria e, em consonância, à introdução nas missas e noutros ritos de práticas musicais que são uma das faces da sociedade de consumo, no que ela tem de espectáculo bizarro, grotesco, degradante porque acéfalo e alienante. Trata-se de um caminho fácil, que leva os crentes incautos à penúria cultual e cultural e a destruírem o que lhes resta de pensamento autónomo e poliédrico, aquele que propicia o acolhimento de uma dimensão sobrenatural da realidade e conduz à dignificação social e ao impulso criador e colaborante com Deus. Pelo outro lado, difundem sub-repticiamente, empáticos e simpáticos, um fechamento eclesial muito preocupante, retrocesso rejeitado pela Igreja Católica, sobretudo desde o pontificado de são João XXIII. Colaboram, assim, consciente ou inconscientemente, com o “inimigo”, pois mais não fazem do que aplaudir, promover e incentivar as piores práticas do capitalismo selvagem, tão frontalmente denunciado pelo papa Francisco, aquele que manipula as mentes a toda a hora para melhor as dominar, aquele que distingue as pessoas em função do seu poder económico e social, desprezando as periferias, rendendo-se ao dinheiro e às suas seduções divisoras, ou seja, diabólicas. Não se trata de promover a cultura tradicional dos povos, tão rica de espiritualidade e inconformismo, mas de rebaixar o culto introduzindo nele elementos (falsamente chamados “populares”) que só distraem, perturbam e afastam da Cidade de Deus.

            Como contraponto a essa euforia em torno de alguém que resolveu passar, ainda que momentaneamente, “do convento para o cabaré”, não para converter mas para se tornar visível (Deus lhe perdoe, talvez não soubesse o que fazia…), euforia promovida pela comunicação social ao serviço do poder económico-financeiro (por quem haveria de ser?), recordei momentos inolvidáveis. Lembrei quanto me emocionou em Grândola o Mistério do Cristo dos Gascões, drama sacro medieval vindo de Segóvia na Semana Santa deste ano e chegado às terras do litoral alentejano pela mão do justamente reconhecido Festival Terras Sem Sombra. Fui ainda reler a entrevista recentemente dada por Rui Vieira Nery ao nº. 8 da Invenire.

            Para todos os crentes, a mais alta música litúrgica e sacra (para não dizer, toda a elevada criação artística), produzida ao longo de mais de mil anos de história, teve na sua génese uma assistência do Espírito Santo. Interessam pouco as filiações religiosas dos compositores. O que mais vale é essa música, não erudita mas ascensional (na medida em que nos leva ao Alto), que nos faz subir àquele Infinito a que os crentes chamam Deus. Nessa comunicação com o Inefável, ou seja, nesse contacto com a Altitude Suprema, nós próprios transcendemos as condicionantes que transformam todos os dias a nossa vida em mera existência.

            Só uma deficiente formação religiosa ou enquistamentos que levaram a um empobrecimento espiritual e cultural poderão levar tantos católicos (clérigos e leigos) a desejar ouvir nas suas igrejas algo que até pode ser espectacular (ou seja, alienante), mas nunca estimulará a espiritualidade no que ela tem de amor a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Substituir a verdadeira música sacra, antiga ou contemporânea, tradicional ou não, por entretenimento nos arredores da sacristia é prestar um péssimo serviço aos fiéis, à Igreja, à sociedade e a Deus, compactuando com o que há de mais boçal e rasteiro no nosso tempo.

            Por isso considero de tanta valia o trabalho desenvolvido por algumas instituições, como a comunidade ecuménica de Taizé, a diocese de Beja – que neste ano organiza pela décima vez oFestival Terras Sem Sombra – ou o Seminário de São Paulo de Almada. Num tempo em que a todo o momento e por todos os meios se injecta nas nossas mentes o veneno do relativismo e do rebaixamento moral, ético, social e cultural, as suas iniciativas vão inoculando num número crescente de pessoas o antídoto que talvez as possa salvar. Não é o mesmo ouvir em contexto religioso Plummer, frei Manuel Cardoso, Bartok, Bach, Feldman, Mozart, Messiaen ou um coral alentejano e aguentar no mesmo espaço uma cantoria mal amanhada, vinda da terra dos “fenómenos” ou dos seus arredores, mesmo que sejam no Brasil...

            Como afirma Rui Vieira Nery na entrevista supracitada, não “se pode, na liturgia, competir com a indústria de entretenimento, utilizando os mesmos instrumentos e a mesma estética”, porque aí – até quando? pergunto eu – “Nunca teremos fumos, bailarinas, cenários, foguetes e luzes”. Apimbalhar as celebrações, tirando delas o mistério que é a sua essência e as justifica, nunca será aproximar os fiéis da Igreja. É participar no envenenamento dos crentes ou assistentes, que já muito andam envenenados – e por isso reivindicam a toda a hora o que nunca lhes deverá ou deveria ser dado. Volto ao testemunho crente do musicólogo: “Uma coisa é investir na comunicação e na partilha daquilo que se faz na Igreja, outra é a ideia de seguir o gosto dominante das indústrias culturais massificadas”.

            Para que não se diga que defendo o “elitismo” – a chapada do costume, quando surge alguém a defender a elevação cultural, dentro e fora da Igreja, como o melhor método de resistência contra a alienação, tão estupidificante, do nosso tempo –, além do referido festival, que vivamente aconselho, recordo dois CDs. São exemplos do que se pode fazer e difundir, sem nunca ceder à promoção da penúria mental. Um deles intitula-se Cânticos da Tarde e da Manhã, cantado por Teresa Salgueiro e editado pelo Seminário de Almada, na diocese de Setúbal, a partir de uma iniciativa do padre Rodrigo Mendes. Ouvi-lo não deixa ninguém indiferente… O outro, já clássico, é a colectânea Cânticos Alentejanos, do coro do Carmo de Beja, com direcção artística do padre Cartageno. Aí a tradição mais autêntica casa-se com a espiritualidade aberta e consciente dos alentejanos, daqueles que vêem no firmamento e nas vistas largas da sua planície uma expressão da vastidão da divindade.

             Inocular o antídoto é fazer como em Beja, Almada e noutros lugares que marcam a diferença: acolher e divulgar o tesouro de um património musical imenso, aceitar e incentivar o que há de melhor no “erudito” e no “popular/tradicional”, abrir as portas à criação contemporânea, desde que ela corresponda a padrões de qualidade inegociáveis e leve à conservação e a um mais atento usufruto do depósito da fé. Quem diz na música, diz noutras dimensões da vida eclesial, porque não há culto sem cultura e, já agora, cultura sem culto “em espírito e verdade”.

quinta-feira, 24 de abril de 2014




A ESCADA DA DEMOCRACIA

por Ruy Ventura

                Sou de uma aldeia situada a sete quilómetros de Castelo de Vide, vila onde nasceu e está sepultado o capitão Fernando Salgueiro Maia. Exerço o ministério docente numa escola do concelho de Setúbal onde, pela última vez, deu aulas o poeta e cantor José Afonso. Esta proximidade física poderia ter nulo significado no meu olhar sobre o nosso país e a sua forma de governo. Acontece, contudo, que tenho entre os meus familiares próximos alguém que participou activamente nas operações militares que levaram à queda da ditadura de Thomaz e Caetano. Sucede que sou descendente de um ex-militante de um dos partidos que fundou a democracia portuguesa, homem que prontamente abandonou a sua filiação quando se deu conta de que essa organização política, cujos estatutos visam a construção do bem comum, era sobretudo um instrumento de promoção pessoal, de tráfico de influências e, talvez, de corrupção. Estes exemplos poderiam não ter exercido qualquer influência sobre o meu pensamento. Dá-se todavia o caso de eu ser, desde a adolescência, um leitor assíduo daquele texto basilar onde se afirma que o salário dos trabalhadores clama quando não é pago com justiça, sobretudo quando aqueles que o deveriam entregar vivem “na terra, entregues ao luxo e aos prazeres, cevando assim os [seus] apetites”. A estas palavras daquele Sant’ Iago, cognominado “o justo”, habituei-me ao longo dos anos a juntar a mensagem de Jesus Cristo, sobretudo quando nos aconselha a sermos simples como as pombas e astutos como as serpentes. Ressoam ainda hoje as suas bem-aventuranças: “Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados… Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus”. Ressoam ainda as suas imprecações: “[…] ai de vós, ricos, porque recebestes a vossa consolação! Ai de vós, os que estais agora fartos, porque haveis de ter fome!”.
            Não me comoveria hoje tanto, quando recordo e evoco os heróis cívicos que Portugal e os lusitanos talvez ainda não tenham merecido (Maia, Zeca e tantos outros…), se não tivesse nos meus alicerces esta tradição multissecular. Talvez não me angustiasse do mesmo modo, quando vejo a existência dos portugueses retroceder até padrões civilizacionais indignos, se a mensagem do cristianismo (e também de muito do judaísmo) não ecoasse tanto em mim e, desse modo, não soubesse que o mundo está a ser governado pelos servos de Mamon, cujo objectivo, lentamente conseguido, é transformar as imperfeitas democracias (não há democracias perfeitas, porque são humanas) em descaradas, embora hipócritas, plutocracias, reduzindo-nos à servidão. É que não se pode adorar ao mesmo tempo a Deus e ao dinheiro…          
            Todos temos o dever de pôr em prática um exame de consciência. Que queremos de nós, da sociedade, do mundo? Que fazemos/faremos para alcançar essa meta? Quanto temos praticado em sentido contrário? Tinha quatro meses quando ocorreu a revolução de 25 de Abril de 1974. E embora, um ano ou dois mais tarde, gritasse que o povo estava com o MFA, só a leitura e a meditação de toda a tradição humanista e judaico-cristã me levou a ter consciência de quanto são inseparáveis a democracia e uma verdadeira dignidade humana, de quanto são faces da mesma moeda a liberdade e a responsabilidade, de que “tudo nos é permitido, mas nem tudo nos convém”, como escreveu São Paulo. Desejo, assim, a democracia – e não a demagogia ou a libertinagem – porque sei que não podemos ser livres sem beleza, bondade e verdade, que não pode haver igualdade sem uma justa redistribuição e um correcto usufruto dos bens materiais e imateriais, que não existe fraternidade sem referência a uma paternidade e maternidade comuns, como bem viu recentemente o papa Francisco. Estes são valores judaico-cristãos, que Saint-Martin e a revolução francesa apenas revisitaram e actualizaram. Penso que só os concretizaremos quando realmente se praticar a proposta de Leão XIII na sua encíclica “Rerum Novarum”: “[…] não é justo que o indivíduo ou a família sejam absorvidos pelo Estado, mas é justo, pelo contrário, que aquele e esta tenham a faculdade de proceder com liberdade, contanto que não atentem contra o bem geral e não prejudiquem ninguém”. Embora confiantes e esperançados na força do ser humano quando se liberta de quanto o prende e estupidifica, temos de estar muito preocupados, pois vivemos um tempo em que nem os governados são para o governo nem o governo para os governados; todos são instrumentos nas mãos do poder ilegítimo financeiro, sem rosto, que mata sem hesitar, que reduz milhões à miséria social, moral e espiritual. Assim se justifica a promoção da penúria material, a estimulação do consumismo acéfalo e desenfreado, a alienação dos cidadãos pela valoração de um relativismo ético e de uma ignorância sobranceira que incitam a preguiça boçal, a agressão descarada e a barbárie mais assustadora.
            Tudo isto se passa em Portugal e também noutros países. Mas neste rectângulo em que nos foi dado viver temos ainda um sistema político-social que se desfaz, porque nele abundam seres que não promovem o bem comum porque não podem, não querem ou não sabem fazê-lo. Há sinais de esperança, é certo. Há sempre sinais de esperança… Felizmente há portugueses, crentes e não-crentes, que discretamente dão resposta à exortação publicada em 1963 por santo Ângelo José Roncalli. O bom papa João XXIII, na encíclica “Pacem in Terris”, incitou “todas as pessoas de boa vontade”, principalmente os católicos, a “participarem activamente na vida pública” e “contribuírem para a obtenção do bem comum de todo o género humano e da própria comunidade política; e [a] se esforçarem […] para que as instituições de finalidade económica, social, cultural e política sejam tais que não criem obstáculos, mas antes facilitem às pessoas o próprio melhoramento, tanto na vida natural como na sobrenatural”.          Que melhor desejo posso ter para as próximas décadas de democracia em Portugal? As palavras desde grande santo espicaçam-nos. Espicaça-nos também outro grande cristão, o enorme escritor Raul Brandão (e com ele termino): “Espero pelo dia […] em que acabe a exploração do homem pelo homem. Espero pelo dia em que a instrução seja realmente gratuita e obrigatória para todos – e o ensino religioso. […] Espero o dia em que o homem compreenda que o supérfluo é um crime. Mais justiça e mais pão para todos. Mais Deus para todos.” Deverá ser esta a nossa meta, em todos os dias do nosso futuro. Só assim valerá a pena sermos cidadãos nesta sociedade, nesta pátria, neste mundo.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

 
 
A ELEIÇÃO, A DIVISÃO E O CAMINHO

A eleição e as intervenções do papa Francisco têm trazido ao de cima, em certos espaços de discussão religiosa, o quanto neste momento os católicos estão divididos. A alegria geral pela sua elevação à cátedra de bispo de Roma e pelas suas palavras (cada frase/gesto seu é uma proposta de metanóia) não se espelha no interior de toda a Igreja, por mais que alguns tentem disfarçar. Não falo de uma acepção restrita da palavra "Igreja", que normalmente só se refere aos clérigos; falo dos crentes, dos chamados "leigos".
Temos, dum lado, um grupo serôdio de "ultramontanos" entrincheirados, que, muitas vezes, lembra aquele que deu origem, por interesse ou fanatismo, à Inquisição e às suas piores atrocidades. Do
outro, é visível um arquipélago complexo de activistas das mais diversas causas ou de "relativistas" que tenta moldar a doutrina aos seus interesses particulares, sem olhar à mensagem de Cristo ou chegando mesmo a deturpá-la conscientemente. Há ainda uma maioria, assim creio, que tenta viver o melhor que pode a benevolência contida na mensagem evangélica, apesar das suas insuficiências, normais em seres humanos imperfeitos. Basta viajar pelos diversos blogues, por várias páginas na "internet" e por grupos de discussão no "facebook" para constatar isto mesmo.
Na minha opinião de cristão católico (ou seja, de cristão que procura a universalidade), o caminho mais digno será sempre este: diálogo incessante tendo em vista a união na diferença das várias igrejas cristãs; diálogo com as outras religiões e tradições (incluindo, por mais que não se queira, a maçonaria teísta), no respeito por aquilo em que cada um acredita, tendo em vista a construção de propostas comuns para o bem da humanidade; diálogo também com os ateus (que não comerão os católicos, de certeza...) e terão muitas palavras a dizer e imensas propostas a formular. Tal caminho não necessita de levar ao apagamento da matriz da fé e da palavra de cada um. Mas também nunca poderá impedir a correcção aberta ou a denúncia de teorias ou práticas que não respeitem a bondade, a beleza e a justiça. Será sempre esse o caminho para a paz.
A leitura do belo diálogo entre o papa Francisco e um rabino argentino apresenta uma das formas possíveis desta demanda. Está lá tudo ou quase tudo.
Infelizmente há, contudo, católicos (que, decerto, não serão cristãos nem crentes) que são como certo "santo" com língua de prata, que nunca teve problemas de consciência quando insultava o beato João XXIII, chamando-lhe "velho a cheirar a vacas". Cheira-me que, murmurando, brindarão Jorge Mario Bergoglio com mimos deste cariz...
Será sempre bom repetir: temos de sair da indiferença, rejeitar o fechamento e a hostilidade, deixar para trás a tolerância e construir uma relação entre religiões, entre seres humanos, baseada na benevolência.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Beleza em tempos de guerra
 

[…] alguém duvidará, ainda, de que estamos em guerra?” – A pergunta obriga-nos a suspender o passo e a enfrentar a barbárie. Vêm-nos à memória imagens que gostaríamos de esquecer: crianças que não se concentram na escola porque têm fome; velhos que vão definhando porque não têm dinheiro para aviar os medicamentos (enquanto outros gastam centenas de euros numa noite só); homens e mulheres catando no lixo dos supermercados alimentos fora de prazo para matar a fome (e ao lado o luxo, indiferente, exibindo-se); a frieza dos governantes pugnando pela redução do orçamento público da educação e da saúde (nunca dizendo que os filhos estudam em colégios privados e consultam médicos nos melhores hospitais particulares); e muitas, muitas outras…
De repente, ao lado do aviso de guerra, ouço as palavras de María Zambrano, lidas há pouco no seu livro A Agonia da Europa: “Ser cristão é também não se resignar, agarrar-se à esperança no impossível”. As duas juntas, constatação e exaltação, enrijam e preparam para a luta: – uma luta de paz, mas de firmeza, contra o logro, contra um mundo centrado nesse demónio chamado dinheiro, contra aqueles que dissolvem deliberadamente a dignidade humana por actos ou omissões.
A frase com que iniciei este texto é de José António Falcão. Faz parte do texto de abertura do programa do festival “Terras sem Sombra”. Creio que, ao escrevê-lo, também deve lhe ter passado pela mente, consciente ou inconscientemente, a definição da filósofa espanhola. Todo este evento, que se realiza pela nona vez, se estrutura sob o signo da Beleza, não dispensando contudo na sua proposta sólida uma Verdade ecuménica que não se impõe e uma Bondade que nos interpela:
A Verdade e o Bem têm sido apontados insistentemente, no último século, como via privilegiada para Deus. Porém, a Beleza não o é menos. Hoje vemo-nos órfãos dela e desejamo-la ardentemente. Alguém duvidará de que saber descobri-la e partilhá-la representa uma prova suprema de amor?” (p. 10)
Descobrir – “inventar” no melhor sentido etimológico – e partilhar a Beleza será a tarefa suprema dos seres humanos, porque ao mesmo tempo, discretamente, estará oferecendo também a Verdade e o Bem, escadas para o Divino, que se concretiza na mais sólida e inviolável dignidade do Homem e da Natureza. Passar da “tolerância”, quase sempre indiferente e relativista, à “benevolência”, ao desejo activo do bem comum – como dizia e bem o papa emérito Bento XVI. E sabemos hoje o quanto nós, seres humanos, dependemos de uma natureza amada e preservada, o quanto a nossa existência depende dessa devoção:
[…] Arte, cultura, espiritualidade e conservação da natureza são as armas de uma resiliência necessária em tempos de escolhas. Ser faber ou sapiens, eis o que está em jogo.” (p. 28)
Por isso precisamos tanto de “ração de combate” nestes tempos de guerra fria, surda e suja, porque a “ração” – as palavras não mentem e ainda menos as suas raízes – será sempre uma “razão” de combate, desse “bom combate”, como dizia São Paulo, pela imanência e pela transcendência.
Um conjunto de concertos ajudará pouco nestes tempos, dirão. Asseguro-vos contudo que ouvir, no vazio (espaço aberto dentro de nós), Machaut, Escobar, Mozart, Pergolesi, Haydn, Ligeti ou Schönberg, enquanto se contemplam belas esculturas e pinturas que tornam visível um Espírito que nos consola, será encontrar a nascente da esperança, essa que nenhum de nós, crente ou descrente, poderá perder, como já referiu o papa Francisco, que decerto não esqueceu o Amor (Charitas) como centro de tudo.
Volto às palavras de José António Falcão, à sua habitual sabedoria (espero que um dia decida recolher em livro essas suas reflexões):
[…] Eis o momento em que tudo depende da capacidade de julgar, com lucidez e serenidade. Nestas circunstâncias – alguém duvidará, ainda, de que estamos em guerra? –, um módico pecúlio de coisas fundamentais pode fazer a diferença. O soldado sabe que a ração de combate lhe permite sobreviver, ganhar forças para fazer frente aos obstáculos do inimigo e prosseguir até à fonte que saciará a sua sede e ao vergel que fartará a sua fome. […]” (p. 15)
Neste tempo de guerra não podemos faltar à Beleza, pois sem ela nunca a Verdade e o Bem constituirão por si só o triângulo sagrado. Com firmeza e lembrança, temos de recordar sem rancor quem foram os judas desta peleja, mas também os nossos “excessos de confiança” e a nossa “complacência face aos corruptos (e aos seus corruptores)” (p. 22). Com alegria e esperança, “sem queixumes”, temos de arregaçar as mangas porque são necessários “sinais de confiança”. Este marco da cultura no Alentejo “assume-se como um deles”. (Talvez um dia se alargue além da diocese de Beja, assim queiram os alentejanos dos distritos de Évora e de Portalegre…) Temos de dar outro uso à frase tristemente célebre de um governante: custe o que custar, não podemos acabar, por falta de água, à beira da nascente. Não fomos castigados como Tântalo, apesar das nossas faltas. Saibamos pois descobrir a beleza que as “Terras Sem Sombra” nos oferecem neste tempo de guerra para que, depois, reconciliados connosco e com o mundo, possamos descobri-la dentro de nós e à nossa volta.

Ruy Ventura

quinta-feira, 2 de maio de 2013



TROIKA

Leio um escrito russo do século XIX. Em nota de rodapé, o bom tradutor informa que "troika" é "um trenó puxado por três cavalgaduras". Esboço um sorriso, meio amargo. Penso que o veículo é Portugal, a deslizar por um terreno muito escorregadio, gelado, numa guerra fria, surda. E as "três cavalgaduras"? Não acredito que sejam boas bestas. São bestas de carga, submissas perante os seus donos (os donos do dinheiro que "nunca hesitarão pôr um povo a passar fome se isso for necessário para ganhar mais uns biliões" (ex-funcionário do maior banco americano dixit!)), sobranceiras face àqueles que, enregelados, têm o azar de viver o pesadelo de não conseguir sair do trenó, de não conseguir salvar o trenó, de se verem puxados pelas "cavalgaduras" até ao abismo, até ao "inferno", o mundo inferior, dos mortos. Sobranceiras e capazes de coices mortais.
Lembra-me mestre Gil Vicente: "mais vale burro que nos carregue do que cavalo que nos derrube". Sim... Mas os mansos asnos estão em vias de extinção, dizem.
Restam as bestas, três, como as três cabeças de Cérbero, o cão feroz que guarda o Hades, que vê com os olhos fechados e dorme com os olhos abertos. Recordo Dante, a placa sobre a porta do Inferno: "Vós que aqui entrais, deixai toda a esperança..."
O mais alto Mestre avisa-me contudo: "Sêde simples como as pombas, astutos como as serpentes... Olhai os lírios do campo..."
Páro para pensar. Que culpa tem a palavra?, que culpa tem o veículo?, que culpa têm as boas cavalgaduras se os escreventes com língua-de-pau resolveram compará-los às sinistras figuras que nos governam dentro e fora de fronteiras?

Ruy Ventura 
(in "Etymologias")

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013




PALAVRAS QUE PERTURBAM

por Ruy Ventura

“[…] quando o Filho do Homem voltar,
encontrará a fé sobre a terra?”
Jesus de Nazaré (Lucas, 18: 8)

         No Natal de 1969 um jovem professor de Teologia, com pouco mais de quarenta anos, proferiu na Emissora Radiofónica de Hessis uma conferência que, hoje, podemos considerar profética. A prelecção intitulava-se “Que aspecto será o da Igreja no ano 2000?” e, a dado passo, afirmava:
         Da crise de hoje […] nascerá amanhã uma Igreja que terá perdido muito. Tornar-se-á mais pequena, terá em larga medida de recomeçar tudo de novo. Essa Igreja não vai poder encher muitos dos edifícios que construiu quando a conjuntura era favorável. Com a perda do número de seguidores, perderá também muitos dos seus privilégios na sociedade. Terá de se apresentar de modo muito mais forte do que até aqui, como uma comunidade de voluntariado, a que só se pode aceder por decisão. Enquanto pequena sociedade, vai exigir de modo muito mais marcante a iniciativa dos seus membros. […] Será uma Igreja interiorizada […]. Não terá uma vida fácil. Porque este processo de cristalização e clarificação custar-lhe-á alguns bons colaboradores. Torná-la-á pobre e fará dela uma Igreja dos pequeninos. O processo será tanto mais difícil por a Igreja ter de eliminar tanto a tacanhez sectária como a bravata daqueles que só querem fazer a sua vontade. […] preparam[-se] tempos muito difíceis para a Igreja. § A autêntica crise mal começou. Deve-se contar com grandes abalos […]”
         A autêntica crise mal começara… É possível que o autor destes trechos, retirados de um livro intitulado “Fé e Futuro”, tenha pensado na sua afirmação quando, em Abril de 2005, lhe coube dirigir em Roma a Via Sacra de Sexta-Feira Santa. Meditando a partir da terceira queda de Jesus Cristo a caminho do Calvário, proferiu palavras duras, cortantes:
         Tantas vezes celebramos apenas nós próprios, sem nos darmos conta sequer d’ Ele! Quantas vezes se contorce e abusa da sua Palavra! Quão pouca fé existe em tantas teorias, quantas palavras vazias! Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele! Quanta soberba e auto-suficiência. […] Senhor, muitas vezes a vossa Igreja parece-nos uma barca que está para afundar, uma barca que mete água por todos os lados. […] O vestido e o rosto tão sujos da vossa Igreja horrorizam-nos. Mas somos nós mesmos que os sujamos! Somos nós mesmos que Vos traímos sempre, depois de todas as nossas grandes palavras, os nossos grandes gestos. […]
         O homem que tal disse era Joseph Ratzinger. Dias depois sucederia a João Paulo II como papa e escolheria, significativamente, o nome de Bento. O pastor que pensou e difundiu o diagnóstico que nos perturba só poderia confirmá-lo e aprofundá-lo em 2013, dias depois de anunciar “urbi et orbi” a sua renúncia ao sólio pontifício por razões que, totalmente, só ele e Deus conhecerão. Na homilia de Quarta-Feira de Cinzas sublinharia quão importante é “o testemunho de fé e de vida cristã de cada um de nós e das nossas comunidades para manifestar o rosto da Igreja; rosto este que, às vezes, fica deturpado.” E explicou: “Penso de modo particular nas culpas contra a unidade da Igreja, nas divisões no corpo eclesial. Viver a Quaresma numa comunhão eclesial mais intensa e palpável, superando individualismos e rivalidades, é um sinal humilde e precioso para aqueles que estão longe da fé ou são indiferentes.
         Todas estas palavras, dirão, têm apenas interesse para os católicos que, agora, esperam a eleição do seu novo líder religioso, depois da decisão inesperada e raríssima de um alemão que decidiu abdicar do lugar em que fora investido, dizem, pelo Espírito Santo. Assim não creio. Se o nosso objectivo é trabalharmos para que se diluam – como propôs Bento XVI – as relações de tolerância mútua em benefício da construção de uma comunidade de seres benevolentes, ou seja, se queremos transformar uma sociedade de indiferença entre os seres num mundo centrado no bem de cada ser humano, estas palavras não podem deixar-nos indiferentes – se olharmos para quanto nos rodeia de uma perspectiva sagrada e sacralizadora, seja qual for a nossa postura perante Deus.
         Perturbado pelas palavras que transcrevi e por quanto têm de verdadeiro neste mundo em que tudo vale e tem o mesmo valor, dei por mim a pensar num dos célebres frescos de Giotto di Bondone, existentes na Basílica de São Francisco, em Assis. Do lado direito, temos um papa (Inocêncio III, 1198-1216) que sonha. Do outro, a representação do sonho: São Francisco impede a derrocada de uma catedral, ou seja, da Igreja por inteiro. Eram tempos conturbados aqueles… como os nossos. A santidade de Francisco impediu a queda. E agora?
         Tentando aliviar a perturbação, peguei num livrinho do filósofo russo Nicolai Berdiaeff, cristão ortodoxo defensor da unidade das Igrejas, perseguido pelos comunistas, leitor e admirador das obras do nosso Teixeira de Pascoaes. Nesse opúsculo intitulado “Da Dignidade do Cristianismo e da Indignidade dos Cristãos” reproduz uma história que me dá que pensar sempre que a leio. Saiu da mão de Boccacio, escritor medieval italiano.
         Um cristão tentava há muito converter um amigo judeu. O baptismo do israelita estava à porta. Quis contudo, antes de dar o passo definitivo, ir a Roma apreciar a conduta da Cúria e do pontífice. O católico, que tanto trabalhara, viu as suas expectativas irem por água abaixo.         O judeu partiu e constatou a hipocrisia, a depravação, a corrupção, a cupidez que reinavam nessa época na corte do Papa entre o clero romano. Voltou – e o seu amigo cristão logo lhe perguntou com inquietação que impressão trazia de Roma. A resposta, com um sentido muito profundo, foi das mais inesperadas: se a fé cristã nunca foi abalada por todos os escândalos e abominações que havia visto em Roma e se, apesar de tudo, ainda se fortificava, ela deveria ser a verdadeira fé. O israelita tornou-se assim cristão.
         É preciso separar, nestes tempos de “fulanização”, a exigente doutrina nascida nas e das palavras de Jesus Cristo do modo impuro, fanático, interesseiro e/ou depravado com que muitos cristãos a vivem, distinguir o Cristianismo (nas suas diferentes vias) da hipocrisia anticristã daqueles que apontam o argueiro mas escondem a tranca que têm sobre a cabeça. Sabendo que os cristãos vivem em direcção a uma meta de perfeição, sem serem seres perfeitos, é preciso denunciar aqueles que, diabolicamente talvez, querem uma Igreja tacanha de “puros” e fecham portas quem nem eles próprios sabem abrir. Mas, ao mesmo tempo, devemos impedir o crescimento de um Cristianismo de trazer por casa, à la carte, sem criação, sem altitude, sem mistério, sem espiritualidade, sem sacralidade e sem compaixão.
         Berdiaeff sublinha: “Não é culpa de Cristo se a sua verdade não se cumpre nem se realiza na vida. Cristo não é responsável se os Seus mandamentos são espezinhados.” O próximo papa, com as suas insuficiências e com humildade, deve contribuir, como Francisco de Assis, para que o Cristianismo se mantenha de pé, como proposta de elevação e salvação do ser humano. É a sua tarefa – e a tarefa de todos os cristãos e homens de boa vontade.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013


MAL DE CANGA, PIOR DE ARADO

         Estávamos sentados à mesa de um restaurante, de um belo restaurante que escolhera para sala de refeições um daqueles pátios floridos que só existem na Andaluzia. Falávamos sobre a influência da cultura semita na Península Ibérica. Às tantas, Ahmad resolveu perguntar-me palavras que, do árabe, haviam ficado na nossa língua. Dei-lhe vários exemplos, entre eles “alcofa”. Riu-se. E, no seu inglês cultivado nas margens do Nilo, explicou-me: “É o nome que damos no Cairo aos seguidores da Irmandade Muçulmana: têm orelhas grandes como asas, mas não ouvem nada, só as arengas dos fanáticos que os chefiam. São muito perigosos. Sei do que falo. Apesar de ser filho de uma figura importante nos meios religiosos egípcios, já por duas vezes me ameaçaram de morte, por ter escrito algo de inconveniente no jornal onde trabalho.” E explicou mais: “Mubarak era um monstro, um assassino. Mas quem lhe sucede foi feito num molde muito pior.
        Quantas asneiras não se têm feito por esse mundo fora devido à impaciência… Querendo livrar-se, o mais rapidamente possível, de facínoras e de corruptos, quantos povos não têm instalado no poder figuras sinistras ou fanáticas que mais não fazem do que acentuar o sofrimento dos seres humanos que os rodeiam.
         O feudalismo da monarquia russa não foi substituído por setenta e tal anos de comunismo sem escrúpulos e sem ética? A ditadura de Baptista, em Cuba, não foi apagada pela tirania “revolucionária” dos irmãos Castro? À imperfeita monarquia constitucional não sucedeu em Portugal um regime republicano fanático, caótico e caceteiro? A balbúrdia anti-democrática dessa Primeira República portuguesa não foi “salva” por uma Ditadura Militar – aplaudida por tantos compatriotas nossos – que abriu as portas a quatro décadas de autocracia salazarista? O luminoso 25 de Abril de 1974 não ia trazendo uma “democracia popular”… estalinista? Um certo Pinto de Sousa, de má memória, não foi removido, sem que o soubéssemos, por um trio de criados da agiotagem internacional que vê como seu principal obstáculo a Constituição da nossa pátria?
         É importante, nestes nossos tempos conturbados, que não sejamos como os “alcofas” egípcios: com orelhas grandes (quiçá, com línguas demasiado compridas), mas sem capacidade de audição e de atenção. Quem esteja atento, já assistiu decerto nalguns lugares públicos, físicos e virtuais, à ressurreição de frases de António de Oliveira Salazar e de outros “santos” com o mesmo quilate, embora doutros quadrantes político-sociais, a prometerem o “ressurgimento” e outras acções purificadoras e, decerto, cegas e fanáticas. Sejamos simples como as pombas e astutos como as serpentes. Não nos deixemos enganar pelo canto das sereias, por mais belas e atraentes que sejam, pois a sua face verdadeira é monstruosa. A História já provou desse veneno várias vezes.
 
         Sejamos com a velha da história tradicional. Um dia encontrou-se com o seu rei, sem que o conhecesse (estava disfarçado). Procurava o monarca ouvir a opinião verdadeira do seu povo sobre o seu governo (ainda não existiam sondagens nem assessores naquele tempo…). “Que diz a senhora do rei?”, perguntou-lhe. “Deus o guarde por muito tempo!”, retorquiu a idosa sem demora. “Como pode dizer isso?... Dizem que ele é mau…”, inquiriu o governante, desconfiado. “Olhe, eu já sou velha. Já conheci o avô deste. Era mau como tudo. Pedimos a Deus que morresse e Ele fez-nos a vontade. Veio o pai dele. Pior ainda, como o pecado… Rezámos outra vez e fomos atendidos. Veio o rei de agora. Muito, muito pior que os dois anteriores. Portanto, Deus o conserve… Quanto vier outro, não vamos ficar melhor.
 
         A narrativa não conta que consequência teve esta resposta. Ensina-nos contudo que a impaciência nem sempre é boa conselheira. A democracia representativa tem decerto muitos defeitos. Alguns insanáveis. Mas, na sua imperfeição, é ainda a forma de governo mais equilibrada que o homem até hoje pôde inventar.
Ruy Ventura

terça-feira, 27 de novembro de 2012

 
 
A maldade
de uma reforma administrativa
 
 
                   

Tenho de começar este texto recordando os sinónimos da palavra “cobardia”. Se começa por ser falta de força moral, ausência de coragem, rapidamente se transforma em deslealdade, em baixeza, em perversidade e em traição – ou seja, em maldade. A esta perigosa forma de fraqueza (que normalmente caracteriza pessoas, sociedades e regimes que só são fortes perante os fracos), tenho de somar contudo a ignorância – não apenas falta de conhecimento, mas também ausência de instrução, de cultura e de saber. Perigosa estupidez, quando elevada aos cumes da técnica, transforma-se em maldade, numa maldade convencida e sobranceira.
A reforma administrativa, recentemente “proposta” ao governo e ao parlamento, não parece dispensar qualquer destes ingredientes. É cobarde – porque é desleal, traidora, perversa e maldosa, ao escolher a adopção de uma violência inusitada contra os fracos, como forma de protecção dos fortes. É ignorante, inculta, iletrada e maldosa – porque a sua concepção (além de critérios financeiros, demográficos e outros que só o diabo conhece), não teve em conta nem a geografia, nem a história, nem a sociologia e muito menos a economia e a política. Tais qualificativos bastariam para lhe atribuirmos o epíteto de “ignóbil porcaria”, não se tratasse ainda de um acto discricionário onde saltam à vista a incompetência técnica, um espírito anti-democrático e um total desprezo pelos mais elementares direitos do ser humano que vive em sociedade.
Se este conjunto de documentos não manifesta incompetência, então é, deliberadamente, um exemplo de mentira, o que, a ser verdade, revelaria critérios de actuação política só admissíveis em ditadura ou tirania. Como se explica, por exemplo, que num dos relatórios se proponha a extinção de duas freguesias do concelho de Portalegre (Carreiras e São Julião) porque as respectivas sedes distam apenas cerca de dois quilómetros “sem acidentes orográficos ou outros obstáculos relevantes” pelo meio, quando, na realidade, a distância entre elas é muito maior, tendo a dividi-las montes e serras com reconhecida altitude (num dos casos, o alto de São Mamede, ponto cimeiro a sul do Tejo, com mais de mil metros)?
Há, ainda, a admissão de critérios tirados da roleta. Como é possível que, numa sede municipal como Castelo de Vide, só porque tem a sorte de estar num concelho com apenas quatro freguesias, se mantenham três delas no interior de uma vila pequena – e uma cidade com a dimensão de Setúbal, porque tem mais autarquias, seja obrigada a ficar apenas com uma no seu núcleo urbano?
Das três, uma: ou houve incompetência, ou houve desleixo, ou houve maldade, maldade substanciada na manipulação de dados como forma de fundamentar o inaceitável. E tudo pago, e decerto bem pago, com o dinheiro dos contribuintes, tão escasso!
Esta reforma é, ainda, anti-democrática. Não respeita qualquer praxe de um regime livre. Afirma, por exemplo, que a pronúncia de uma assembleia municipal pela conservação de todas as freguesias do seu concelho é considerada uma não-pronúncia… Mais grave que isto é, contudo, retirar às populações residentes e proprietárias o direito de se pronunciarem directamente sobre o seu futuro. Só aos eleitores/contribuintes caberia decidir, num eventual referendo, a manutenção da sua freguesia, a sua junção com outra vizinha e, até, a possibilidade de mudar de município, se essa fosse a vontade maioritária. Quem tem medo da voz do povo? Começo a dar razão àqueles que afirmam que Portugal parece uma democracia, mas na realidade está longe de o ser, seja gerido por socialistas ou por social-democratas.
Integrada numa estratégia geral de abandono das populações fragilizadas do interior, esta maldosa e injusta “reforma” é, ainda, violentadora dos direitos elementares dos mais fracos. Não pode ser vista isoladamente. É mais um passo da marcha para o abismo do mundo rural, do caminho para a desertificação, que tem levado ao encerramento de maternidades, escolas, centros de saúde, hospitais, postos de correio, tribunais, quartéis, etc.. Há neste momento aldeias que são antecâmaras da morte: só têm casas, total ou parcialmente desabitadas ou arruinadas, lar de idosos, igreja para missas de sufrágio e cemitério. Tudo o mais foi abandonado pelos poderes públicos – o que se acentuará com rapidez se esta reforma for por diante como está.
Sendo evidente que pouca poupança trará a extinção de mais de um milhar de freguesias, haveria ainda assim outras formas de reduzir a despesa, nomeadamente nos municípios e noutros serviços supérfluos do Estado. A opção foi, contudo, assassinar num terço das nossas terras o único órgão eleito que serve povoações com escasso acesso a outros meios de acção sócio-política. Valeria a pena reformar com saber a administração da grande faixa litoral e promover medidas que atraíssem mais habitantes ao interior, numa estratégia de discriminação positiva. Mas não é esse o objectivo dos cobardes e velhacos que há muito decidiram esvaziar o interior para melhor o ocuparem e dominarem com “projectos de interesse nacional” que só a eles interessam (assim me confidenciou há cerca de um ano um homem que ocupou o cargo de ministro). Sabem que, do outro lado, terão pouca luta, pois os adversários são pessoas envelhecidas ou cidadãos sem meios para expressarem a sua indignação e a sua revolta. Sabem que, ao seu lado, está a ignorância de uma população urbana que despreza tudo quanto vá além do seu mesquinho mundo exibicionista e consumista…
Chegados a este ponto, urge perguntar sem medo se não existirão traidores por obras ou por omissão. Devemos estranhar a falta de acção de alguns políticos, de alguns autarcas que pouco ou nada dizem, pouco ou nada fazem, que talvez de propósito fundamentaram mal as decisões tomadas. Não seria inédito se, mais uma vez, trocassem o bem-estar dos seus conterrâneos por futuros proveitos, por benefícios vindouros retirados da nova organização do território. Pensarão, em segredo, no novo fôlego que ganharão em freguesias refundidas, agora que já não podem concorrer àquela que dominaram durante anos a fio. Há sempre traidores – e nem sempre distantes. É preciso estar alerta.
Quanto a nós, simples cidadãos, é importante continuar a lutar, ainda que o pior venha a acontecer. E, se o pior acontecer, transformemos a extinta autarquia numa comunidade. Ou seja, mesmo que a freguesia desapareça, devemos continuar a viver em comum, a trabalhar para o bem comum, fazendo valer os nossos direitos. Será preciso trabalhar para futuro, com os olhos abertos, olhos postos numa identidade que deve ser reconquistada e reinventada como alicerce de um novo e inovador edifício social e convivente.
 
Ruy Ventura
Vila Nogueira de Azeitão, Novembro de 2012