quinta-feira, 28 de junho de 2012



UM MAU ESCRITOR TALENTOSO



Ao ver, há poucas semanas, um texto de José Saramago no enunciado da prova final de Língua Portuguesa de 6º ano, recordei um saboroso e muito vertical artigo do filósofo e poeta Paulo Tunhas sobre um ensaio de João Pedro George em torno dos livros de Margarida Rebelo Pinto (p. 43 do nº 14 da revista Atlântico). A dada altura, afirma (e com razão, a meu ver):
“[...] Cheguei à conclusão que Saramago é um mau escritor talentoso, uma espécie vulgar. Palavroso, moralista, sem ponta de ironia. Uma opinião, apesar de tudo, ligeiramente melhor do que aquela para a qual, na minha ignorância, eu tendia naturalmente. Leva-se suficientemente a sério para não se entediar a meio da escrita dos livros, e isso permite-lhe um certo élan, naturalmente interdito a espíritos mais voláteis ou simplesmente mais lúcidos.”
Como a memória tem coisas que ninguém entende, enquanto lia estas frases recordei uma crónica do crítico e ensaísta Fernando Venâncio, onde – delicada e ironicamente – punha a nu os espanholismos desnecessários que enxameiam as obras do romancista, não como recursos estilísticos, o que seria normal, mas como pés que resvalam para a poça, como descuidos que um bom revisor nunca deveria permitir.
Sobre o homem-Saramago reencontrei ainda um artigo de José do Carmo Francisco intitulado: “Será José Saramago um fotógrafo de Estaline? (Crónica para os olhos tristes de Maria Belmira)”, vindo a lume no nº 29 de suplemento Fanal do jornal O Distrito de Portalegre (22/11/2002):
“[...] O mesmo José Saramago que um dia recebeu um enormíssimo ramo de flores numa homenagem promovida por uma Câmara Municipal no Alentejo e não quis voltar para Lisboa sem primeiro passar pelo Lavre para entregar o ramo à tua mãe para que o destino final daquelas flores fosse a campa do teu irmão João, foi o mesmo que resolveu apagar o nome do teu pai, da tua mãe, da tua irmã e de várias muitas outras pessoas da primeira página do livro Levantado do Chão. E isto mesmo depois de ter assegurado por escrito e por extenso – Sem eles não teria sido escrito este livro.
[...] [Este texto] é no fundo um texto de descoberta, de revolta e de repúdio por uma situação de morte civil só comparável à acção dos fotógrafos de Estaline que faziam desaparecer das fotografias várias pessoas inconvenientes e que, só anos depois se viria a saber, não deveriam ter estado ao lado do ‘grande líder’. [...]
[...] [Isto] para ir lembrar o ano de 1976 quando tinhas apenas quinze anos de idade e um escritor quase desconhecido entrou pela porta da casa dos teus pais para escrever um livro (Levantado do Chão) e para, muitos anos depois, de modo totalmente inesperado e (para mim) injusto, vir fechar a primeira página desse livro a quem lhe tinha aberto as portas da sua casa e do seu coração.”
A pouco e pouco o pano vai caindo. E, não fossem influências de várias ordem – que nada têm que ver com a arte e a literatura, mas com manobras relacionadas com dinheiro e com jogos políticos e pessoais –, mais cairia ainda… Há cada vez mais homens e mulheres que concordam com as palavras do poeta polaco C. Milosz (galardoado justamente com o prémio Nobel). No momento em que Saramago recebia a distinção sueca, não teve papas na língua e quebrou o unanimismo acrítico, afirmando que o autor de Memorial do Convento não passava de “um escritor de segunda ordem”.  Fosse o grande escritor polaco português e chamar-lhe-ia, talvez, com Paulo Tunhas, “um mau escritor talentoso”. Eu encontraria outros adjectivos, mas aqueles que se apresentam são suficientes para qualificar quem viveu e quem escreveu naquele ser humano.
Ser famoso, como se deveria saber, é bem diferente de ser importante. E não basta receber o prémio que mais dinheiro oferece para se ser um escritor, um artista, inovador e um ser humano exemplar. Como diz um velho provérbio, nem tudo o que luz é oiro – e às vezes nem prata é.

Ruy Ventura

sexta-feira, 22 de junho de 2012



GENEROSIDADE


         Foi com sobressalto e desgosto que há poucas semanas me confrontei com o fecho de um dos meus santuários lisboetas, a “Barateira”. Levada pela malvada “crise” e por jogos que nem vale a pena qualificar, tão sujos são, este alfarrabista da nossa capital era, em simultâneo, um templo da leitura e uma câmara do tesouro – para quem tivesse a paciência e a persistência de demandar nas suas estantes as mais valiosas preciosidades que o homem foi escrevendo e editando. Era um lugar generoso. Pequenas quantias monetárias geravam, se o Espírito assim queria, momentos inesquecíveis de prazer e de elevação. 
         Sempre que posso, perco-me pelos alfarrabistas e por feiras de velharias, ao encontro de livros importantes, raros ou esquecidos pelo tempo. Tenho para mim que alguns livros antigos ou em segunda mão procuram os seus próprios donos. Não somos nós que vamos na sua demanda, são eles que esperam por nós – aguardando a nossa visita e a nossa atenção apaixonada.
         Tenho tido momentos felizes na minha paixão bibliófila. Entre os dias que recordarei até ao fim da minha existência, estão vários que foram felizes porque nas suas horas tive a honra de encontrar e poder levar para casa obras que (tenho a certeza) há muito me esperavam. Seria difícil listar todos os livros que consolaram os meus dias, todos esses momentos de encontro. A título de exemplo posso citar, contudo, o primeiro livro do poeta portalegrense Carlos Garcia de Castro, editado em 1955, que pertenceu ao enorme pintor surrealista Manuel D’ Assumpção, a primeira edição de Claridades do Sul, de Gomes Leal, ou a antologia do Prémio Almeida Garrett, publicada em 1957.
         Esta última colectânea é um livro exemplar por razões que passo a expor. Atribuído pelo Ateneu Comercial do Porto em 1954, só três anos mais tarde a antologia do Prémio Almeida Garrett viu a luz do dia. O júri foi constituído por nomes que dispensam apresentações: Afonso Duarte, João Gaspar Simões, Paulo Quintela e Vitorino Nemésio. Foram 103 as obras concorrentes. O galardão coube a uma obra de Miguel Torga.
Neste nome reside a mais importante dimensão desta colectânea. Por estranho que pareça, não integra um único poema do autor de Poemas Ibéricos, uma vez que a obra teve edição autónoma. Não foi paga, como seria de esperar, pelo Ateneu Comercial do Porto, que promovera o prémio. Foi paga pelo primeiro premiado que, tendo conhecimento da alta qualidade de algumas das obras que haviam sido preteridas em favor do seu livro, decidiu abdicar do valor monetário que lhe era devido para proporcionar aos seus colegas de letras (jovens ainda e inéditos em livro) as alegrias da publicação. (É caso para perguntar: quantos poetas “medalhados” do nosso tempo teriam hoje coragem para manifestarem uma tamanha generosidade?)
         A história terminaria aqui se os autores antologiados no livro que veio acolher-se à minha biblioteca fossem hoje ilustres desconhecidos. Acontece que, entre a vintena de poetas aí incluídos, constam alguns poetas hoje indispensáveis no edifício da Poesia Portuguesa Contemporânea. Entre eles, destacam-se Fernando Echevarría, Cristovam Pavia, António Gedeão e, além deles, Fernando Vieira, José Carlos Ary dos Santos (que autografa o livro) e alguns outros, com obra estimável.
         Estes autores não tinham, em 1954, qualquer livro publicado. Tivesse Miguel Torga guardado o dinheiro no bolso, banqueteando-se com ele, e qual teria sido o destino da obra destes escritores, cuja poesia hoje reconhecemos? 

A POESIA HUMILDE DE FÁBIO GOMES


         É sempre com muita alegria que encontro um poeta até então meu desconhecido, um daqueles criadores que colocou a sua vida ao serviço das palavras. Rejubilo quando descubro a autenticidade verbal e existencial de um Homem que, usando os recursos que tinha à sua disposição, tentou comunicar uma visão peculiar do Universo. Não me interessam as circunstâncias que rodearam o autor. Desejo apenas que os poemas sejam frutos saborosos e não imitações plásticas fabricadas por um versejador mais ou menos habilidoso; “versejadores há-os em qualquer parte: nos bancos das tabernas e nas academias, nas leivas de terra e nos jardins relvados, nos jogos florais e entre luxuosas encadernações...”, como escrevi num jornal em 2005.
         Dum verão vivido há uns anos, guardo a alegria de ter encontrado um poeta. Nunca conheceu em vida o contentamento de um livro publicado. Pertence ao grupo dos criadores de uma Poesia Humilde (próxima do húmus, da terra), a que João David Pinto-Correia chamou “tradicionalistas”, porque se socorrem dos instrumentos da tradição oral, comunicando através de uma linguagem simples, mas autêntica. Chamou-se (chama-se) Fábio Gomes e nasceu em Aljezur a 31 de Julho de 1911, tendo falecido em Lisboa no dia 5 de Junho de 1998. O volume que, postumamente, guarda a sua produção poética intitula-se Flores de Outono e foi editado, em boa hora, pela Junta de Freguesia da sua terra e lançado no passado mês de Agosto.
         É um autor modesto que nos escreve: “Não olhes para o poeta / Para saber se versa bem / Na cara dele não se vê / O valor que a rima tem // [...] // Às vezes escrevo com erros / Coisas que lembro da vida / Digo à pena os meus segredos / Escritos em letra tremida” (p. 180).
         Ligado à terra, exalta o valor de quem a torna fértil, comparando o seu trabalho com o de um verdadeiro Artista: “O artista cavador / Com as cores da natureza / Pinta quadros de valor / Com realismo e beleza // [...] // Lindos pomares em flor / Os trigais da cor do mel / As tintas foram suor / A enxada o seu pincel // Com a enxada na mão / Dando vida à sua tela / Tirando da terra o pão / Faz a sua obra mais bela” (p. 59).
         Fábio Gomes exprime com encantamento, com humor ou com mágoa, mas sempre com frontalidade, a sua visão do mundo, seja natural ou humano. Satiriza o “Carnaval” político, através de uma fábula em que um “chibato orgulhoso / Com a sua pêra imponente, / Pendura os óculos nos chifres / Foi eleito presidente!” (pp. 120 a 125). Manifesta desilusão, quando recorda os desmandos do pós-25 de Abril: “Estalou a revolução / Por todos tão desejada. / Eu sofri uma decepção / Vi a minha terra ocupada. // Agora com a ocupação / Sou um zero, não à direita, / Já não faço a sementeira / Nem sei nada da colheita.” (pp. 194/195). Nascido numa terra de gentes ligadas ao mar, personifica-o, para revelar os muitos dramas que guarda: “Numa noite tão serena / Chorava de dor o mar / Será que ele tinha pena / De tanta gente matar?...” (p. 88).
         Muitos dos poemas são autobiográficos, como costuma suceder com boa parte da poesia lírica, apesar das máscaras do fingimento. Sentimentos, emoções e memórias ascendem à superfície do texto, de forma aberta ou velada. Adaptando um velho provérbio à sua experiência, Fábio Gomes afirma: “Há os que vivem chorando / Levando a vida a cantar / Eu levo a vida cantando / Com o coração a chorar” (p. 200). Mostra-se então uma dor de existir que se reflecte na escrita (“O que tem a minha pena / Que de pena anda perdida / Será porque a minha pena / Tem pena da minha vida?” (p. 15)), vinda da consciência de um tempo que passa e não regressa: “O tempo passou por mim / Sempre a correr sem parar / E eu à espera do tempo / Não vi o tempo passar.” (p. 104).
         “Dizem que perto da morte / É só quando o Cisne canta. / Serei eu também assim / Que só agora no fim / Abri a minha garganta!? // [...] // Se estivesse em minha mão, / Como Cisne eu queria ser. / Mostrar a minha alegria / Cantando uma melodia / E depois de cantar, morrer.” (p. 26). A poesia, nascida no entardecer da vida, é para Fábio Gomes um canto de cisne – um canto de cisne que merece ser conhecido por quantos apreciam uma poesia humilde e, logo, autêntica.