quinta-feira, 24 de maio de 2012




BORGAS E BALDAS

         Faz agora um ano que me vi obrigado, por dever familiar, a assistir à “bênção das pastas” celebrada no relvado da Cidade Universitária de Lisboa pelo cardeal-patriarca D. José da Cruz Policarpo. Jurei que nunca mais lá porei os pés. Nem celebração, nem bênção, nem qualquer coisa definida me pareceu tal aglomeração da espécie humana. Missa terá sido, mas para poucos, pois noventa por cento virou-lhe as costas. Festa, talvez, na ingenuidade de quem deita foguetes antes de ter direito à alegria da concretização e de quem esquece, por momentos, que aquele dia não é um fim, mas um começo. Tive a certeza de que a maior parte dos assistentes preferiria estar no mesmo local, mas a assistir a um concerto de certo cantor brejeiro do norte de Portugal, enfrascando umas imperiais e fumando uns charros…
         Confrontando-me com este cenário, recordei com irónica nostalgia a letra de um "hino do estudante" que os alunos da Escola Superior de Educação de Portalegre costumam entoar: "Os pontos requerem estudo,/ mas tu não estás nessa onda,/ tu só queres é café, é café, é vadiagem.../ É vadiagem pela noite e muitas baldas pelo dia,/ o estudo aperta e o curso é uma utopia."
         Não sei se noutras instituições do Ensino Superior os estudantes costumam cantar pérolas deste quilate. Não tenho, contudo, grandes dúvidas ao afirmar que o "espírito académico" apresentado pela letra é comum a uma grande percentagem dos alunos das nossas universidades e institutos politécnicos.
         Vindos de um clima laxista que se instalou no sistema educativo português, muitos dos jovens que entram no Ensino Superior desejam apenas serem "estudantes", sem vontade alguma de estudarem. Sabe que o estudo é sinónimo de esforço e exigência – realidades a que não querem adaptar-se, vindos de doze anos de escolaridade em que podem ter "empinado" conteúdos, mas pouco trabalharam para terem um pensamento crítico e informado sobre o mundo que os rodeia.
         Chamar-me-ão pessimista – mas basta lermos com uma atenção mínima as estatísticas que por aí pululam para chegarmos a estas conclusões. Junto a esta leitura a experiência que guardo dos anos que leccionei no Ensino Superior, recheada de exemplos de alunos cujo único objectivo era a aquisição do "canudo" com o mínimo trabalho - pois à frente da aquisição de um conhecimento enraizado estava sempre uma outra meta: viver a "vida académica"... E qualquer pessoa conhecedora do significado desta expressão sabe quais são os seus sinónimos: "vadiagem pela noite e muitas baldas pelo dia", como diz a letra acima citada, quantas e quantas vezes com álcool (e outras substâncias) à mistura.
         Não tomo a nuvem por Juno. Sei que existem milhares de alunos nas nossas universidades e institutos que se esforçam por aprender e enriquecer os seus conhecimentos. De igual modo, o conhecimento que tenho de algumas instituições leva-me a dizer que as baldas e as borgas dos estudantes são apenas um elemento da face negra da sua existência; há que considerar também a contratação duvidosa de professores, a gestão clientelar de alguns departamentos na elaboração dos currículos dos cursos e na planificação pedagógica das disciplinas. Mas a realidade é o que é e basta conviver uns tempos numa dessas comunidades universitárias para observar comportamentos que confirmam quanto digo (e não sou o único a dizê-lo).
         Neste âmbito, nunca esquecerei a frase dita há alguns anos por uma amiga minha, portuguesa que então estudava na Universidade de Paris-Nanterre: "Mas esta gente anda na universidade para estudar ou para passar o tempo em bares, em discotecas, em concertos de música pimba, em desfiles e em carnavais?".

Ruy Ventura

terça-feira, 15 de maio de 2012



TERRA COM SOMBRA


         Se no princípio do Universo esteve – como creio – a aliança entre o Pensamento e Palavra, só pela Palavra e pelo Pensamento cresceremos no confronto e na aceitação do mistério que nos transcende e nos rodeia. Só com a ajuda da sabedoria nascida do Verbo (encarnado há cerca de dois mil anos) poderemos reconciliar-nos com o Mundo, com o Outro e, sobretudo, connosco – neste tempo tão complexo, de sociedade em crise, à procura de um novo paradigma civilizacional. Não interessa se a Sabedoria nos chega por palavras, por imagens, por sons, por movimentos ou pela contemplação do “jardim do mundo”. Vale a pena tão só aceitar, entender e praticar com humildade os seus atributos: “há nela um espírito inteligente e santo, / único, múltiplo e subtil, / ágil, penetrante e puro, / límpido, invulnerável, amigo do bem e perspicaz, / livre, benéfico e amigo dos homens, / estável, firme e sereno, / que tudo pode e tudo vê, / que penetra todos os espíritos, / os inteligentes, os puros e os mais subtis” (Sabedoria, 8: 22 – 23).
         Verdade seja dita que há também palavras que nos salvam ou que, pelo menos, nos consolam. Lembro, por exemplo, quanto me pacificou, há uns anos, a dedicatória inscrita por José António Falcão numa das suas mais belas obras (A a Z – Arte Sacra da Diocese de Beja, 2006): “Este livro é dedicado a todos os que, saindo do Alentejo, não o abandonaram”. Alentejano exilado por vontade alheia, na co-movente Península da Arrábida, tão simples frase teve a capacidade de cauterizar feridas ainda recentes de alguém que continuava a martelar a letra de um velho fado: “Abalei do Alentejo, / olhei para trás chorando. / Alentejo da minh’ alma, / tão longe me vais ficando”.
         Já tive oportunidade de manifestar a minha integral admiração pelo trabalho desenvolvido no Baixo Alentejo pelo Departamento do Património Histórico-Artístico da Diocese de Beja. Não vale a pena repetir razões, tantas elas são. É contudo, importante, sublinhar o seu exemplo clarividente, em áreas só aparentemente separadas da preservação e divulgação dos bens artísticos da Igreja Católica. Bastará recordarmos a sua abertura ao Outro e ao mundo poliédrico da Cultura contemporânea, a revitalização dos Caminhos de Sant’ Iago no sul de Portugal ou o Festival “Terras sem Sombra”, neste momento a decorrer na sua oitava edição. Mesmo no “exílio”, penso que todos os alentejanos se sentirão serenamente felizes ao verem a sua terra como palco de um evento musical com ecos espalhados pelo mundo fora.
         É belo o seu nome, “Terras Sem Sombra”. E ainda mais belo ao revelar, aos ouvidos de quem o saiba entender, a essência da espiritualidade do Alentejo – proposta ao Mundo. Para compreendermos esta “terra sem sombra”, tão minguada de gentes, é preciso meditar os dois primeiros versos da quadra que deu origem ao título: “O Alentejo não tem sombra, / senão a que vem do Céu.” Não tem sombra material. É quase um deserto (aquele deserto que tanto aproximou os homens de Deus, no confronto com o interior e o exterior do seu ser). Tem apenas a sombra “que vem do Céu” (como diriam os místicos islâmicos heterodoxos). Ou seja, o Alentejo possui a terra inteira dentro de si, porque toda a criação, aos olhos do crente, é uma “sombra de Deus”, uma manifestação da realidade divina. Abdicou – e transformou-se em rei de si próprio (como diria Fernando Pessoa por Ricardo Reis).
         Sem sombra divina, não teria alma. Por isso me permito afirmar que a música do espírito apresentada pelo Festival “Terras sem Sombra” revela, na ausência de matéria, uma outra sombra que é, no fundo, um símbolo da Vida, daquela que transcende a existência. Tem pois José António Falcão toda a autoridade para espicaçar os ouvintes do festival com um texto claro e perturbador na sua análise e nas suas propostas. Interpretando a espiritualidade alentejana como proposta e exemplo, afirma no programa do evento:
         “Se o ‘tempo dos guerreiros’ e o ‘tempo dos agricultores’ souberam reconhecer até que ponto a benevolência apaziguada e a violência extrema se podem cruzar na natureza, o ‘tempo dos mercadores’ entregá-la-ia a uma pilhagem sem precedentes, exacerbada pela industrialização , que conduz o planeta até à fronteiras do descalabro. […] Depois do caçador, do lavrador, do metalurgista, do comerciante, emerge cada vez com maior nitidez a imagem do cuidador de um jardim que, como arquétipo, se projecta sobre os quatro pilares da sustentabilidade: ambiente, economia, sociedade, cultura. […] Este jardineiro […] vislumbrado [por Charles Péguy] não será, afinal, o mesmo que apareceu a Maria Madalena, junto ao túmulo, após a Ressurreição […]?
         Ameaçado e em grande perigo, o planeta só salvará se os homens de boa vontade souberem interpretar “a sombra que vem do Céu” e cuidarem do “jardim do mundo” em paz e harmonia. É, para isso, necessário, acolhermos o mistério da Vida e percebermos que esse acolhimento só acontecerá se abrirmos no nosso interior o espaço necessário, entrevendo – como refere J. A. Falcão – “a essência criadora do nada”, tão próxima quando vivemos a boa, a bela e a verdadeira terra do nosso Alentejo.

Ruy Ventura

quarta-feira, 2 de maio de 2012




UM CRAVO SOBRE O ESTERCO

      
         Hoje resolvi reflectir sobre o 25 de Abril e das suas consequências. Entendi, contudo, que qualquer das minhas palavras sobre o assunto pouco valeria frente às frases de um democrata de esquerda, que conheceu o exílio e a perseguição da ditadura. Assim se expressa:   
         “Se alguém quisesse acusar os Portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril. / […] havia dois problemas […] a descolonização e a liquidação do antigo regime. / Quanto à descolonização, havia trunfos para a realizar em boa ordem e com vantagem para ambas as partes […]. / Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. […] / O outro problema era o da liquidação do regime deposto.
         […] impunha-se […] fazer o […] julgamento [do regime], determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. […] / […] o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial. […] / Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regime, como não se fez a descolonização. Uns homens substituíram outros, quando os mesmos não substituíram os mesmos […].
         […] falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas […] nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres do anterior, mais a vergonha da deserção. E com este começo tudo foi possível depois […]: […] vieram os contrabandistas […] e os falsificadores […] em lugares de confiança […]; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; […] veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de estabelecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio “honesto” de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco. / […] Portugal está hipotecado por esse débito moral enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se num futuro próximo, merecemo-las, moralmente. / Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente.”
         Estas palavras foram escritas em 1979 pelo historiador António José Saraiva. Poderiam ter sido escritas em 2012. Hipotecados financeira e moralmente, quantas vezes sem vergonha, continuamos a sofrer as consequências da irresponsabilidade, do materialismo e do oportunismo que nunca nos largaram nestes últimos 38 anos. Sofremos, mas somos responsáveis sempre que as nossas atitudes são indignas do heroísmo e da ética demonstrados pelos nossos antepassados em momentos luminosos da nossa História.

 Ruy Ventura

 Ruy Ventura