terça-feira, 27 de novembro de 2012

 
 
A maldade
de uma reforma administrativa
 
 
                   

Tenho de começar este texto recordando os sinónimos da palavra “cobardia”. Se começa por ser falta de força moral, ausência de coragem, rapidamente se transforma em deslealdade, em baixeza, em perversidade e em traição – ou seja, em maldade. A esta perigosa forma de fraqueza (que normalmente caracteriza pessoas, sociedades e regimes que só são fortes perante os fracos), tenho de somar contudo a ignorância – não apenas falta de conhecimento, mas também ausência de instrução, de cultura e de saber. Perigosa estupidez, quando elevada aos cumes da técnica, transforma-se em maldade, numa maldade convencida e sobranceira.
A reforma administrativa, recentemente “proposta” ao governo e ao parlamento, não parece dispensar qualquer destes ingredientes. É cobarde – porque é desleal, traidora, perversa e maldosa, ao escolher a adopção de uma violência inusitada contra os fracos, como forma de protecção dos fortes. É ignorante, inculta, iletrada e maldosa – porque a sua concepção (além de critérios financeiros, demográficos e outros que só o diabo conhece), não teve em conta nem a geografia, nem a história, nem a sociologia e muito menos a economia e a política. Tais qualificativos bastariam para lhe atribuirmos o epíteto de “ignóbil porcaria”, não se tratasse ainda de um acto discricionário onde saltam à vista a incompetência técnica, um espírito anti-democrático e um total desprezo pelos mais elementares direitos do ser humano que vive em sociedade.
Se este conjunto de documentos não manifesta incompetência, então é, deliberadamente, um exemplo de mentira, o que, a ser verdade, revelaria critérios de actuação política só admissíveis em ditadura ou tirania. Como se explica, por exemplo, que num dos relatórios se proponha a extinção de duas freguesias do concelho de Portalegre (Carreiras e São Julião) porque as respectivas sedes distam apenas cerca de dois quilómetros “sem acidentes orográficos ou outros obstáculos relevantes” pelo meio, quando, na realidade, a distância entre elas é muito maior, tendo a dividi-las montes e serras com reconhecida altitude (num dos casos, o alto de São Mamede, ponto cimeiro a sul do Tejo, com mais de mil metros)?
Há, ainda, a admissão de critérios tirados da roleta. Como é possível que, numa sede municipal como Castelo de Vide, só porque tem a sorte de estar num concelho com apenas quatro freguesias, se mantenham três delas no interior de uma vila pequena – e uma cidade com a dimensão de Setúbal, porque tem mais autarquias, seja obrigada a ficar apenas com uma no seu núcleo urbano?
Das três, uma: ou houve incompetência, ou houve desleixo, ou houve maldade, maldade substanciada na manipulação de dados como forma de fundamentar o inaceitável. E tudo pago, e decerto bem pago, com o dinheiro dos contribuintes, tão escasso!
Esta reforma é, ainda, anti-democrática. Não respeita qualquer praxe de um regime livre. Afirma, por exemplo, que a pronúncia de uma assembleia municipal pela conservação de todas as freguesias do seu concelho é considerada uma não-pronúncia… Mais grave que isto é, contudo, retirar às populações residentes e proprietárias o direito de se pronunciarem directamente sobre o seu futuro. Só aos eleitores/contribuintes caberia decidir, num eventual referendo, a manutenção da sua freguesia, a sua junção com outra vizinha e, até, a possibilidade de mudar de município, se essa fosse a vontade maioritária. Quem tem medo da voz do povo? Começo a dar razão àqueles que afirmam que Portugal parece uma democracia, mas na realidade está longe de o ser, seja gerido por socialistas ou por social-democratas.
Integrada numa estratégia geral de abandono das populações fragilizadas do interior, esta maldosa e injusta “reforma” é, ainda, violentadora dos direitos elementares dos mais fracos. Não pode ser vista isoladamente. É mais um passo da marcha para o abismo do mundo rural, do caminho para a desertificação, que tem levado ao encerramento de maternidades, escolas, centros de saúde, hospitais, postos de correio, tribunais, quartéis, etc.. Há neste momento aldeias que são antecâmaras da morte: só têm casas, total ou parcialmente desabitadas ou arruinadas, lar de idosos, igreja para missas de sufrágio e cemitério. Tudo o mais foi abandonado pelos poderes públicos – o que se acentuará com rapidez se esta reforma for por diante como está.
Sendo evidente que pouca poupança trará a extinção de mais de um milhar de freguesias, haveria ainda assim outras formas de reduzir a despesa, nomeadamente nos municípios e noutros serviços supérfluos do Estado. A opção foi, contudo, assassinar num terço das nossas terras o único órgão eleito que serve povoações com escasso acesso a outros meios de acção sócio-política. Valeria a pena reformar com saber a administração da grande faixa litoral e promover medidas que atraíssem mais habitantes ao interior, numa estratégia de discriminação positiva. Mas não é esse o objectivo dos cobardes e velhacos que há muito decidiram esvaziar o interior para melhor o ocuparem e dominarem com “projectos de interesse nacional” que só a eles interessam (assim me confidenciou há cerca de um ano um homem que ocupou o cargo de ministro). Sabem que, do outro lado, terão pouca luta, pois os adversários são pessoas envelhecidas ou cidadãos sem meios para expressarem a sua indignação e a sua revolta. Sabem que, ao seu lado, está a ignorância de uma população urbana que despreza tudo quanto vá além do seu mesquinho mundo exibicionista e consumista…
Chegados a este ponto, urge perguntar sem medo se não existirão traidores por obras ou por omissão. Devemos estranhar a falta de acção de alguns políticos, de alguns autarcas que pouco ou nada dizem, pouco ou nada fazem, que talvez de propósito fundamentaram mal as decisões tomadas. Não seria inédito se, mais uma vez, trocassem o bem-estar dos seus conterrâneos por futuros proveitos, por benefícios vindouros retirados da nova organização do território. Pensarão, em segredo, no novo fôlego que ganharão em freguesias refundidas, agora que já não podem concorrer àquela que dominaram durante anos a fio. Há sempre traidores – e nem sempre distantes. É preciso estar alerta.
Quanto a nós, simples cidadãos, é importante continuar a lutar, ainda que o pior venha a acontecer. E, se o pior acontecer, transformemos a extinta autarquia numa comunidade. Ou seja, mesmo que a freguesia desapareça, devemos continuar a viver em comum, a trabalhar para o bem comum, fazendo valer os nossos direitos. Será preciso trabalhar para futuro, com os olhos abertos, olhos postos numa identidade que deve ser reconquistada e reinventada como alicerce de um novo e inovador edifício social e convivente.
 
Ruy Ventura
Vila Nogueira de Azeitão, Novembro de 2012

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

 
 
PEQUENOS INDÍCIOS

Resolvi nesta crónica não sair do pequeno território em que costumo mover-me. Às vezes, para compreendermos o mundo, basta atentarmos em quanto nos rodeia e percebermos até que ponto acontecimentos insignificantes são sintomas do que se passa e indícios do que poderá vir a passar-se na sociedade.
Há poucos dias, uma horda nocturna de adolescentes e jovens adultos atormentou as ruas do meu bairro. Aproveitando a "licença" concedida por uma "festa" que nada tem que ver com a cultura do nosso país, resolveram vandalizar as paredes de várias habitações com pinturas e inscrições obscenas, partir janelas de um estabelecimento comercial, danificar uma central eléctrica e destruir mais alguma propriedade pública, de todos. Apesar do barulho animalesco, do posto das forças de segurança, a duzentos metros, não veio qualquer reacção. Nas mesmas ruas, segundo me contaram, vai sendo hábito aparecerem em pleno dia carros com pneus esfaqueados e pintura riscada. Sem que as autoridades façam algo para evitar tal situação. Há até quem afirme que os agentes já declararam saber quem pratica tais actos: os mesmos que até têm assaltado algumas vivendas, mas que não é possível responsabilizar sem haver flagrante. Desse flagrante se foge, contudo, não patrulhando as ruas como deve ser, surgindo nos locais do crime, mesmo que sejam a duzentos metros, meia hora ou três quartos de hora depois. Zelo só existe na autuação de automóveis mal estacionados, desde que não estejam na rua da esquadra, porque aí o espaço sobre os passeios pertence aos veículos dos próprios membros da agremiação.
No meu local de trabalho, ouço que três membros de uma comunidade que persiste na sua auto-discriminação resolveram invadir as instalações para sovarem algumas crianças com cor de pele diferente. Nas imediações, vejo donos de estabelecimentos comerciais quase falidos a transportarem os seus filhos - pasmemo-nos - em automóveis topo de gama. Finjo que estou distraído e ouço palavrões contra uma figura que se tem justamente notabilizado na luta contra a fome no nosso país. Dizem, alto e do alto da sua justiça, que ninguém tem o direito de sugerir que devemos prescindir dos lautos lanches na pastelaria, das mariscadas ao fim de semana, das férias em países estrangeiros, da frequência de bares e de discotecas, da assistência a concertos de música pop ou pimba cujos bilhetes custam o valor dos alimentos consumidos durante uma semana por uma família normal.
Apuro o ouvido na rua e oiço a revolta dos meus concidadãos, apelando (talvez sem saberem) ao despedimento de funcionários públicos e ao encerramento de serviços, de que, depois, terão saudades, organizando manifestações para que voltem a abrir. Ligo o computador e leio alguns textos, plenos de ira e de insanidade, que se publicam na internet. Há quem apele à morte de todos os políticos - desejando, decerto inconscientemente, o regresso de regimes autocráticos, ditatoriais e tirânicos, em que um único político chega para tudo dominar, decerto com menor despesa (Salazar por essas e por outras tem sido considerado um "santo ditador").
Chego a casa, abro um livro de José Ortega y Gasset. Leio: "É indiferente se [o homem massificado] se mascara de reaccionário ou de revolucionário: activa ou passivamente, dando umas ou outras voltas, o seu estado de ânimo consistirá, decisivamente, em ignorar toda a obrigação e em sentir-se, sem que suspeite das razões, detentor de ilimitados direitos." Continuo: "as massas crêem que têm o direito de impor e de dar vigor de lei às suas conversas de café". Não páro: "[...] a alma vulgar, sabendo-se vulgar, tem a ousadia de afirmar o direito à vulgaridade e impõe-no em qualquer lado. [...] Quem não seja como os outros, corre o risco de ser eliminado."
Segundo o escritor espanhol, estas e outras características do "homem massificado" deram origem, nas primeiras décadas do século XX, aos horrores do fascismo, do nazismo e do comunismo. Pergunto-me, com alguma angústia, a que abismo nos levarão agora.

Ruy Ventura

sexta-feira, 2 de novembro de 2012


Ilustração de Luís Afonso.


NA TERRA DO CONTO DO VIGÁRIO


Portugal é uma plutocracia financeira de espécie asinina. É, como todos os países modernos, […] uma oligarquia de simuladores. Mas é uma oligarquia de simuladores provincianos, pouco industriados na própria histeria postiça. Ninguém já engana ninguém – o que é tristíssimo – na terra natal do Conto do Vigário. Não temos senão os vigaristas de praça como prova de qualquer sobrevivência das qualidades de intrujice da nação. Ora um país sem grandes intrujões é um país perdido, porque a civilização, em qualquer dos seus níveis, é essencialmente a organização da artificialidade, isto é, da intrujice. ‘Quem não intruja não come’”.
Não, estas palavras – como é bom de ver – não são minhas. Não me importaria de tê-las escrito – porque com elas concordo –, mas não me pertencem senão enquanto leitor. Apesar de ter colegas na sala de professores da minha escola e muitos compatriotas meus que, do alto da sua inteligência, põem no caixote do lixo todas as doutrinas e opiniões que não tenham sido estruturadas por estrelas vivas e decadentes, continuo a orgulhar-me de quanto me foi dado ler ao longo da vida. Quem escreveu as palavras que transcrevi chamou-se Fernando António Nogueira Pessoa, corria o ano de 1925 – e só agora vieram a lume, conhecendo a luz da edição (saberá o Diabo porquê).
Nesse mesmo texto, entrevista inventada que regista as opiniões de um dos seus heterónimos mais incompreendidos e, por isso mesmo, mais afamados (Álvaro de Campos), o autor de Mensagem diz verdades tão importantes quanto estas: “A massa do país nunca importa. Julga alguém que o ‘povo’ faz revoluções? […] A maioria é essencialmente espectadora. […] O eleitor não escolhe o que quer; escolhe entre isto e aquilo que lhe dão, o que é diferente. Tudo é oligárquico na vida das sociedades. […]” E acrescenta: “Não há correntes proletárias, […] não há radicalismo em parte nenhuma. Tudo isso é o avesso da plutocracia financeira, e é provavelmente dirigido e financiado por ela. Não há nenhum movimento radical que não seja movido, em última causa, pelo Frankfurter Bund, ou por qualquer outro organismo derivado da Internacional Financeira […]”.
Não será necessário recordar que “plutocracia” é o governo dos ricos e dos usurários e que a “oligarquia” é o poder dos poucos que detêm influência sobre a maioria que não tem nem capital nem voz. Frequentemente – como acontece em tantos lugares e países nos nossos dias – uma e outra juntam-se, refinam-se, transformando-se numa “cleptocracia”: o governo dos ladrões. Mas adiante. Com toda a sua ironia e sarcasmo, Pessoa chega a escrever ao Demo, sugerindo-lhe medidas de saneamento social:
É preciso criar abismos, para a humanidade que os não sabe saltar se engolfar neles para sempre. § Criar todos os prazeres, os mais artificiais possível, os mais estúpidos possível, para que a chama atraia e queime. § O problema da sobrepovoação, o problema da sobreprodução eliminam-se criando-se focos de eliminação humana (por meio de todos os vícios), criando focos de inércia humana (por meio de todas as seduções). Fazer suicidas, eis a grande solução sociológica. […] É nosso dever de sociólogos untar o chão, ainda que seja com lágrimas, para que escorreguem nele os que dançam. […] Depois, dos recantos das províncias […] os fortes surgem e a civilização continua. […] a Realidade é um bocado de sol simples, um quintal herdado e a certeza de ser um indivíduo.
Quem tiver ouvidos para ouvir, que oiça! Não são necessárias explicações adicionais, nem é preciso “fazer um desenho” para explicar o que Pessoa disse e quis dizer. Termino com um excerto de “Ultimatum”, assinado pelo mesmo autor em plena Primeira Guerra Mundial: “A Europa tem sede de que se crie, tem fome de Futuro! § […] Quer o Político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu Povo! § Quer o Poeta que busque a Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para os produtos farmacêuticos! § Quer o General que combata pelo Triunfo Construtivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros.
         Repito: quem tiver ouvidos para ouvir, que oiça! E não se deixe levar pelo ruído sedutor que está por todo lado, a começar pelas nossas casas, onde entra pela televisão e pela internet.

Ruy Ventura