quarta-feira, 2 de maio de 2012




UM CRAVO SOBRE O ESTERCO

      
         Hoje resolvi reflectir sobre o 25 de Abril e das suas consequências. Entendi, contudo, que qualquer das minhas palavras sobre o assunto pouco valeria frente às frases de um democrata de esquerda, que conheceu o exílio e a perseguição da ditadura. Assim se expressa:   
         “Se alguém quisesse acusar os Portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril. / […] havia dois problemas […] a descolonização e a liquidação do antigo regime. / Quanto à descolonização, havia trunfos para a realizar em boa ordem e com vantagem para ambas as partes […]. / Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve, mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. […] / O outro problema era o da liquidação do regime deposto.
         […] impunha-se […] fazer o […] julgamento [do regime], determinar as responsabilidades, discriminar entre o são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. […] / […] o julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial. […] / Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regime, como não se fez a descolonização. Uns homens substituíram outros, quando os mesmos não substituíram os mesmos […].
         […] falta ao regime que nasceu do 25 de Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a irresponsabilidade, a confusão foram as taras que presidiram ao seu parto e, com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas […] nasceu podre nas suas raízes. Herdou todos os podres do anterior, mais a vergonha da deserção. E com este começo tudo foi possível depois […]: […] vieram os contrabandistas […] e os falsificadores […] em lugares de confiança […]; veio o compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; […] veio a impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de pressão, chamados partidos, a impossibilidade de estabelecer um critério que joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o considerar-se o endividamento como um meio “honesto” de viver. Os cravos do 25 de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera, fanaram-se sobre um monte de esterco. / […] Portugal está hipotecado por esse débito moral enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou. As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se num futuro próximo, merecemo-las, moralmente. / Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação independente.”
         Estas palavras foram escritas em 1979 pelo historiador António José Saraiva. Poderiam ter sido escritas em 2012. Hipotecados financeira e moralmente, quantas vezes sem vergonha, continuamos a sofrer as consequências da irresponsabilidade, do materialismo e do oportunismo que nunca nos largaram nestes últimos 38 anos. Sofremos, mas somos responsáveis sempre que as nossas atitudes são indignas do heroísmo e da ética demonstrados pelos nossos antepassados em momentos luminosos da nossa História.

 Ruy Ventura

 Ruy Ventura

Sem comentários:

Enviar um comentário