UM CRAVO SOBRE O ESTERCO
Hoje
resolvi reflectir sobre o 25 de Abril e das suas consequências. Entendi,
contudo, que qualquer das minhas palavras sobre o assunto pouco valeria frente
às frases de um democrata de esquerda, que conheceu o exílio e a perseguição da
ditadura. Assim se expressa:
“Se alguém
quisesse acusar os Portugueses de cobardes, destituídos de dignidade ou de
qualquer forma de brio, de inconscientes e de rufias, encontraria um bom
argumento nos acontecimentos desencadeados pelo 25 de Abril. / […] havia dois
problemas […] a descolonização e a liquidação do antigo regime. / Quanto à
descolonização, havia trunfos para a realizar em boa ordem e com vantagem para
ambas as partes […]. / Todavia, o acordo não se realizou, e retirada não houve,
mas sim uma debandada em pânico, um salve-se-quem-puder. […] / O outro problema
era o da liquidação do regime deposto.
[…] impunha-se […] fazer o […]
julgamento [do regime], determinar as responsabilidades, discriminar entre o
são e o podre, para que a nação pudesse começar uma vida nova. […] / […] o
julgamento simplesmente não foi feito. O povo português ficou sem saber se as
acusações que se faziam nos comícios e nos jornais correspondiam a factos ou
eram simplesmente atoardas. O princípio da corrupção não foi responsavelmente
denunciado, nem na consciência pública se instituiu o seu repúdio. Não admira
por isso que alguns homens políticos se sentissem encorajados a seguir pelo
mesmo caminho, como se a corrupção impune tivesse tido a consagração oficial.
[…] / Em resumo, não se fez a liquidação do antigo regime, como não se fez a
descolonização. Uns homens substituíram outros, quando os mesmos não
substituíram os mesmos […].
[…] falta ao regime que nasceu do 25 de
Abril um mínimo de credibilidade moral. A cobardia, a traição, a
irresponsabilidade, a confusão foram as taras que presidiram ao seu parto e,
com esses fundamentos, nada é possível edificar. O actual estado de coisas […] nasceu
podre nas suas raízes. Herdou todos os podres do anterior, mais a vergonha da
deserção. E com este começo tudo foi possível depois […]: […] vieram os
contrabandistas […] e os falsificadores […] em lugares de confiança […]; veio o
compadrio quase declarado, nos partidos e no Governo; […] veio a
impossibilidade de se distinguir o interesse geral dos interesses dos grupos de
pressão, chamados partidos, a impossibilidade de estabelecer um critério que
joeirasse os patriotas e os oportunistas, a verdade e a mentira; veio o
considerar-se o endividamento como um meio “honesto” de viver. Os cravos do 25
de Abril, que muitos, candidamente, tomaram por símbolo de uma Primavera,
fanaram-se sobre um monte de esterco. / […] Portugal está hipotecado por esse
débito moral enquanto não demonstrar que não é aquilo que o 25 de Abril revelou.
As nossas dificuldades presentes, que vão agravar-se num futuro próximo,
merecemo-las, moralmente. / Mas elas são uma prova e uma oportunidade. Se
formos capazes do sacrifício necessário para as superar, então poderemos
considerar-nos desipotecados e dignos do nome de povo livre e de nação
independente.”
Estas
palavras foram escritas em 1979 pelo historiador António José Saraiva. Poderiam
ter sido escritas em 2012. Hipotecados financeira e moralmente, quantas vezes
sem vergonha, continuamos a sofrer as consequências da irresponsabilidade, do
materialismo e do oportunismo que nunca nos largaram nestes últimos 38 anos.
Sofremos, mas somos responsáveis sempre que as nossas atitudes são indignas do
heroísmo e da ética demonstrados pelos nossos antepassados em momentos
luminosos da nossa História.
Ruy
Ventura
Ruy Ventura
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