quinta-feira, 12 de abril de 2012



FRUTOS DA ÁRVORE MEDITERRÂNICA

Sempre me fez espécie ouvir dizer, a alguns compatriotas nossos, que em Espanha se come mal. Nunca tal me aconteceu – e são já numerosas as incursões por esse país acolhedor. Em todas as localidades por onde tenho passado venho encontrando não só seres humanos calorosos e frontais, mas também sabores que me trazem à mente a civilização com raízes mediterrânicas que é a da nossa Península Ibérica.
Como esquecer a deliciosa morcela assada comida à sombra do mosteiro de Guadalupe, as excelentes migas saboreadas sob as arcadas de Plasencia, o arroz de lebre que (em Zorita ou Logrosán) me deu forças para continuar uma viagem, o doce de amora que adoçou um encontro de poetas em Yuste, as alcachofras a tortilha e o gaspacho degustados nas proximidades da catedral de Badajoz, o licor de bolota que nunca deixa a minha garrafeira, a reconfortante torrada à moda extremenha – com alho esfregado, tomate e finas tiras de presunto – com que iniciei um dia na casa do poeta e amigo Antonio Sáez Delgado ou, mais longe, um polvo bem temperado que degustei com a mulher da minha vida na Praça do Obradoiro, em Santiago de Compostela? São sabores que ficam, inesquecíveis na sua essência e no seu contexto de lembranças, sabedorias que nos foi dado conhecer pelo paladar e que, mais do que quaisquer outras facetas do verdadeiro corpo da Península Ibérica, se tornam logo irrepetíveis, imateriais.
Não sou de coleccionar nomes de restaurantes. Posso assegurar-vos de que a nenhuma das experiências gustativas antes enumeradas consigo juntar o nome comercial do estabelecimento onde tiveram lugar. Esse hábito, hoje muito em voga, cheira-me sempre à colagem infantil de cromos numa caderneta ou ao exibicionismo turístico de gente que tanto gosta de mostrar t-shirts compradas em viagens (reais ou imaginárias) a Cuba, ao Brasil ou às Canárias.
Importantes são os ingredientes a que as mãos e o cérebro de muitos homens e mulheres souberam dar sabedoria e arquitectura no gosto: sobretudo o azeite, o vinho e o pão, mas também as peças de caça, o bezerro, o cabrito e o borrego, o porco (bravo ou manso), as aves de capoeira, algum peixe do rio, o leite e o mel, as frutas silvestres ou do pomar, os legumes nascidos de uma terra exigente e sequiosa… Com estes elementos se confecciona tudo ou quase tudo na terra que nos une.
Se falássemos de música, poderíamos dizer que temos alguns temas básicos e muitíssimas variações. O arroz de coelho, as migas e o gaspacho, por exemplo, na minha aldeia de Carreiras, junto de Castelo de Vide, são feitos de outro modo… mas já o “cachafrito” tem uma grande semelhança com algum borrego frito comido em terras da Extremadura espanhola. Vale a pena relembrar? Estamos tão próximos que nem a gastronomia nos separa. Mediterrânicos de um e de outro lado, embora hoje ponhamos no prato uma enorme variedade de receitas, aprendemos todos a mesma lição milenar, somos todos frutos da mesma árvore genealógica.

Ruy Ventura

Sem comentários:

Enviar um comentário