A CAL PARA CAIAR O UNIVERSO
Agostinho da Silva entrou na minha vida tinha eu pouco mais de dezoito anos. Nunca o conheci pessoalmente, mas ao longo de ano e meio mantivemos alguma relação epistolar. Não eram cartas circunstanciais as que fui recebendo do filósofo, mas textos que de uma forma concentrada, aforística, transportavam clarões que ainda hoje me iluminam. É certo que aproveitava, muitas vezes, as circunstâncias da minha correspondência ainda juvenil, mas aproveitava-as para lançar à terra sementes que só muito lentamente foram germinando.
Sobre as comunidades linguísticas, económicas e políticas, por exemplo, disse-me em 24/5/1993:
“A comunidade certa para Portugal tem agora início da parte do Brasil, […] é ainda imaginação dos do culto [do] Espírito que passaram às Américas no [século] XVI. Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa. Um dia iremos mais em frente e seremos uma Comunidade Mundial dos Povos de Línguas Ibéricas. Pense só na extensão disto. Veja só quanto mundo. Das Baleares a Timor […]. Capital? Cada um a tenha dentro de si – e, no mapa, a adore como lhe for próprio em todos os aspectos do concreto e do transcendente.”
No final da sua existência, Agostinho da Silva não escondia alguma desilusão em relação ao seu “apostolado”. Chegou a dizer-me: “em Portugal, já se escreveu bastante. Falta agir”. Um dia (17/3/1993), surpreendeu-me com uma máxima que passou a ser um farol, quase uma regra de vida:
“O fundamental é que não acabemos por dentro – e o que temos que estabelecer é como vamos viver num mundo tão complicado. Temos que viver plenamente por dentro e daí tirar a cal para caiar o universo.”
Este pensamento tinha confirmação nas suas convicções religiosas e no seu olhar sobre a criação humana e divina. A dada altura (22/9/1993) resolveu esclarecer-me:
“Toda a religião que vale é apenas a crença que se pode ter seguido que não é demonstrável por matemática, e que é, quanto a mim, a Credibilidade Absoluta, aquilo que é totalmente o de que nós todos temos uma centelha, o sermos todos criadores, mais ou menos apreciados, o que não importa; seja como for, criemos. E para o enjoo que tantas vezes o diário traz, o mesmo remédio que se usa a tudo [?]: Olhar o horizonte e escutar o grito da chegada, mesmo que o não haja.”
Cristão com raízes na humildade da doutrina franciscana, ensinou-nos a transcender a existência, a chegar à vida pelo serviço: “A quem jamais me dá ordens / faço o que não apeteço / mas sou contra se alguém manda / pois sirvo, não obedeço.” Em 13/8/1993 fez chegar aos meus olhos talvez o seu maior desejo:
“E quem sabe se não seremos todos um dia de uma Ordem Geral dos Irmãos Servidores, que só daqui a muito[s], muito[s] anos tenha estatuto e cuja Regra essencial seja a de nunca mandar, mas servir, e com gosto e com agradecimento.”
No dia em que esta aspiração profética se concretizar, terá o mundo um novo paradigma. Chegará então a fraternidade universal, a que muitos chamam a Idade do Espírito Santo. Que assim seja!
Ruy Ventura
comovida lembrança.
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