quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

MEMÓRIAS DE UM POETA COMOVIDO

         Artur Domingos Garcia era um poeta humilde. Humilde porque durante a sua existência esteve sempre próximo do húmus, da terra. Humilde porque escreveu sem quaisquer pretensões (ao contrários de muitos que, hoje, primeiro querem publicar e só depois criar romance ou poesia). Desejou apenas deixar aos seus descendentes o registo simples de alguns factos da sua vida, das existências que presenciou, da sua maneira de olhar o mundo.
         Foi através de uma sua bisneta que tomei contacto com o caderninho onde registou os seus textos. Alexandra Costa, então minha aluna na Escola Superior de Educação de Portalegre na cadeira de Literatura Oral e Tradicional, que eu então leccionava, trouxe um dia para uma das sessões o pequeno volume onde Artur Domingos Garcia registou ao longo dos anos o que ia escrevendo. Constituído por vinte e oito folhas azuis pautadas, intitulou-o (corrijo a ortografia) Dicionário de uma Família Pobre de Pai Para Filhos.
         O autor, nascido a 27 de Fevereiro de 1901 em Gáfete (no concelho do Crato), passou grande parte da sua vida em Benavila (Avis), localidade onde veio a falecer no dia 22 de Julho de 1992.  Sabia escrever, mas com muitas dificuldades, compreensíveis, tratando-se de um trabalhador rural. Não obstante, devemos integrá-lo no domínio da Poesia Oral ou Tradicionalista (a que alguns erradamente chamam “popular”).
         Emprestado o caderninho, fotocopiei-o com autorização da família. Li-o, depois, com alguma emoção – sentimento que não pude evitar perante a conservação de memórias e de visões do mundo, levada a cabo por um homem simples que tão pouco desejou para si.
         Artur Domingos Garcia auto-intitula-se “poeta comovido” num dos seus textos.  Comovido guardo eu agora esta verdadeira relíquia – que aqui trago ao conhecimento dos leitores/ouvintes.
         As primeiras páginas do manuscrito são em prosa. Relatam alguns episódios da vida pessoal e conjugal do poeta e, ainda, acontecimentos memoráveis da época em que viveu, como o ciclone de 15 de Fevereiro de 1941. Dirigindo-se à filha, sua destinatária, escreve: “Este ano [...] foi um ano terrível para os que se encontravam vivos; não nos bastava uma Guerra Europeia prestes a ser mundial se não agora mais uma guerra natural”. O último registo foi escrito em 25/11/1982, data em que chora a morte de sua mulher.
         A parte poética apresenta temas variados. Desde os “Frutos dos 25 de Abril”, a  relatos de mortes e suicídios, passando por factos da história de Benavila, pela enumeração dos heróis e anti-heróis de Portugal, por críticas aos que instrumentalizam a figura de Cristo, etc.. – tudo vertido em modelos de versificação tradicionais. De entre os poemas deste autor que se apresenta sempre como um democrata (situação perigosa numa época em que estes eram perseguidos), revestem especial interesse as suas reflexões sobre a II Guerra Mundial, que apresentou em duas composições (“artes de poesia”, como lhes chamava). Os seus ideais de igualdade social e de fraternidade universal estão bem patentes neste conjunto de sextilhas (sem dúvida acutilantes e até polémicas) escritas em Abril de 1943:

         Com repúblicas e monarquias,
         Assim vamos passando os dias,
         Vivendo assim iludidos.
         Em guerra vamos passando,
         Por baixo do fogo chorando,
         Uns já mortos, outros feridos.

         Essas grandes democracias
         Combatem todos os dias
         Contra esses ditadores,
         Porque na verdade porém
         Deles só guerra nos vem,
         Fome, lágrimas e dores.

         Ó representantes do mundo
         Sabeis que o mar no seu fundo
         Pode com toda a riqueza.
         Pela guerra é tudo devorado,
         Tanto civil como soldado,
         Morre tudo, é uma tristeza.

         […]

         Mal empregada Ciência
         A custo e com paciência
         Que hoje se está cultivando.
         Só se emprega em maquinismo
         Pra nos trazer o terrorismo
         Para os inocentes ir matando.

         Essas grandes construções
         Tanto em barcos como aviões,
         Não tem fim o seu limite.
         Afinal o que é que fazem [?]
         A morte à gente nos trazem,
         Construção de dinamite.

         Maldita guerra afinal,
         Que se torna universal.
         Achando pouco a Europa,
         Por toda a parte se grita,
         Só se vê gente aflita,
         Tanto civis como tropa.

         Nas aldeias devastadas
         Vêem-se mães, coitadas,
         Com os filhinhos a fugir.
         Atrás delas o vil algoz,
         Com instintos de faraós,
         Só para matar e ferir.

         […]

         Acabai com o armamento
         Todas as nações ao mesmo tempo,
         Sejam iguais as bandeiras.
         Tenhamos uma amizade,
         Com toda [a] solidariedade
         Com os irmãos de Além Fronteiras.

         Esse grupo de vilões,
         Ministros e patrões,
         Esses que nada produzem.
         Com a sua instituição,
         Sem alma nem coração,
         À miséria nos conduzem.

         A revolução social
         Há-de ser universal,
         Está próximo esse dia.
         Traz consigo a igualdade
         Com toda a capacidade
         P’r’ acabar com a burguesia.

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