quinta-feira, 2 de maio de 2013



TROIKA

Leio um escrito russo do século XIX. Em nota de rodapé, o bom tradutor informa que "troika" é "um trenó puxado por três cavalgaduras". Esboço um sorriso, meio amargo. Penso que o veículo é Portugal, a deslizar por um terreno muito escorregadio, gelado, numa guerra fria, surda. E as "três cavalgaduras"? Não acredito que sejam boas bestas. São bestas de carga, submissas perante os seus donos (os donos do dinheiro que "nunca hesitarão pôr um povo a passar fome se isso for necessário para ganhar mais uns biliões" (ex-funcionário do maior banco americano dixit!)), sobranceiras face àqueles que, enregelados, têm o azar de viver o pesadelo de não conseguir sair do trenó, de não conseguir salvar o trenó, de se verem puxados pelas "cavalgaduras" até ao abismo, até ao "inferno", o mundo inferior, dos mortos. Sobranceiras e capazes de coices mortais.
Lembra-me mestre Gil Vicente: "mais vale burro que nos carregue do que cavalo que nos derrube". Sim... Mas os mansos asnos estão em vias de extinção, dizem.
Restam as bestas, três, como as três cabeças de Cérbero, o cão feroz que guarda o Hades, que vê com os olhos fechados e dorme com os olhos abertos. Recordo Dante, a placa sobre a porta do Inferno: "Vós que aqui entrais, deixai toda a esperança..."
O mais alto Mestre avisa-me contudo: "Sêde simples como as pombas, astutos como as serpentes... Olhai os lírios do campo..."
Páro para pensar. Que culpa tem a palavra?, que culpa tem o veículo?, que culpa têm as boas cavalgaduras se os escreventes com língua-de-pau resolveram compará-los às sinistras figuras que nos governam dentro e fora de fronteiras?

Ruy Ventura 
(in "Etymologias")

Sem comentários:

Enviar um comentário