segunda-feira, 5 de março de 2012

O OURO DO TEJO

Não existem fronteiras que separem as duas margens de um rio. Existem margens. Margens só – e água pelo meio. Podemos encontrar símbolos e colá-los à matéria – mas esta continuará sendo apenas o que é e sempre foi: rocha e terra, rasgadas e esculpidas por uma corrente.
Todos os rios são, assim, internacionais, mesmo quando sulcam um só país. Internacionais porque sem nacionalidade (ou com todas as nacionalidades). Por mais que os Homens desejem o contrário, nas suas águas não se espelham línguas nem dialectos – e muito menos bandeiras ou linhas administrativas. A sua gramática é outra. Mesmo quando os seres humanos os transformaram em fronteiras, ditas (erradamente) “naturais”.
Creio que tudo isto entenderam os criadores do Parque Natural do Tejo Internacional. Não é possível separar o que a geografia une. Não se trata apenas de uma questão cultural. Os pontos de contacto e de continuidade são imensos – mas ainda assim insuficientes para o estabelecimento de pontes invisíveis e indissolúveis. A água não separa, une. As margens são metades de um mundo que a corrente bravia, precedida por fortes movimentos tectónicos, afastou, mas não separou. Não por acaso, quando um rei português do século XII doou aos Templários a enorme “herdade de Açafa”, soube incluir nela territórios de ambas as margens do Tejo, tanto do sul da actual Beira Baixa, quanto do norte do Alentejo e do que seriam terras de Cedillo, Herrera e Valencia de Alcántara.
A paisagem é a mesma, sulcada pela espinha dorsal do ocidente peninsular. Essa coluna vertebral chama-se Tejo, um rio hoje amansado pelas barragens que tentam canalizar toda a sua energia (tradicionalmente temível) para as necessidades humanas. Quem se digne subir a um dos seus miradouros, verá de um e de outro lado das águas uma sucessão de montes agrestes, em que o cinzento-acastanhado das rochas se mistura com a vegetação resistente às inclemências do Verão e do Inverno, à escassa pluviosidade, aos devastadores incêndios que por vezes a atacam. Sobreiros, azinheiras, oliveiras, em simbiose com uma infinidade de espécies integráveis na flora de tipo mediterrânico, podem ser olhadas como indícios de uma abundante fauna – também ela adaptada aos rigores do clima e da geografia.
Entre os habitantes que o tempo colocou nessa região – ou que a ela aportaram subindo o Tejo, provenientes da Fenícia ou doutras partes –, não podemos deixar de realçar uma população humana que, sendo escassa, merece a nossa admiração pela sua capacidade de resistência ao meio e, até, às investidas de quantos procuraram diminuí-la ao longo de séculos ou milénios. Houve sempre barcas a ligar a sua dispersão. Foi essa necessidade de intensificar o contacto que, na época romana, levou esses povos a construírem uma das mais impressionantes obras da engenharia, a ponte de Alcántara, que – segundo consta numa lápide – existirá “enquanto o mundo durar” (crendo nós que a frase se referirá mais ao contacto entre Homens e menos às pedras talhadas que um dia se dispuseram em ponte).
Andar pelas terras de Herrera e de Cedillo, por exemplo, é encontrar costumes, cultos e monumentos que reproduzem, surpreendentemente (ou não), os existentes noutras margens do Tejo, na Beira e no Alentejo. Os monumentos megalíticos de um e de outro lado não podem ser entendidos, como viu o arqueólogo Jorge de Oliveira, sem uma visão de conjunto que os compreenda enquanto manifestações físicas de uma única cultura milenar. Não se podem interpretar rituais cíclicos como a “a fogueira do Menino Jesus”, o Entrudo enfarinhado ou a “quinta-feira de compadres”, sem conhecermos o que acontece do outro lado da fronteira. O mesmo acontece com o culto de São Sebastião em terras de Herrera de Alcántara, tão ligado nas terras portuguesas da Raia às ordens militares.
As margens do rio Tejo foram até há poucas décadas locais de exploração de ouro. Já em épocas muito antigas assim era. Hoje o ouro é outro. Está à nossa espera – na água, na terra, nas rochas, na flora e na fauna, nos seres humanos (e na sua memória) que convivem e conviveram com tudo isto. Saibamos nós descobrir e trabalhar, em filigrana espiritual, todo este minério – produzindo riqueza, uma riqueza sempre interior, mesmo quando se expressa em fenómenos visíveis e materiais.

Ruy Ventura
Ponte de Alcántara (Extremadura espanhola)

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