terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

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BAIRRISTAS E FORASTEIROS

         Lembro-me como se fosse hoje. Corria o ano de 1992. Escrevia eu no jornal Notícias de Elvas, hoje extinto, tanto quanto sei. Para moderar um debate promovido por esse periódico fôra convidada uma personalidade qualificada. Feita a introdução necessária ao tema, logo um cavalheiro se levantou da assistência, pedindo a palavra. Quando todos esperávamos uma intervenção suscitadora, o dito cidadão ofereceu a seguinte posta de pescada: “Com tanta gente boa que há em Elvas, logo havia de vir um gajo de fora dizer das suas!” Assim mesmo. Com a delicadeza de um elefante numa loja de loiça (perdoem-me os paquidermes...).
         Há gente assim. Não olha para a qualidade dos seres humanos, para a sua experiência e verticalidade (que consideram, quiçá, incómoda), para as suas capacidades ou para os seus atributos – mas apenas para a certidão de nascimento (verdadeira ou suposta). Tanto quanto sei, tal documento não constitui atestado fiável nem de inteligência nem de competência. Certo bairrismo tem, contudo, olhares estranhos sobre a realidade. Há pessoas, por exemplo, que preferem vinho carrascão, só porque nasceu dumas vides enfezadas lá da terra, e rejeitam uma pinga de estalo, só porque a cepa rebentou em território que não conseguem alcançar com a sua fraca vista. Esquecem quase sempre um princípio universal: podemos nascer em qualquer canto, até num comboio ou numa avioneta; a “pátria” é, contudo, um assunto do coração, crescendo da adesão espiritual a um lugar, tantas vezes diferente daquele em que lançámos o primeiro grito.
         O bairrismo vale a pena quando defende com abertura de espírito e frontalidade crítica as mais profundas aspirações duma colectividade (o seu verdadeiro desenvolvimento mental, cultural, cívico e económico). É manifestação espúria duma sociedade fechada e ignorante sempre que revela um bacoco e míope provincianismo, embebido em estupidez. Geralmente resulta na promoção da mediocridade local, só porque é local. Recusa a crítica legítima, pois tem a mania da perseguição – e qualquer belisco é uma ofensa de morte. É veículo de reprodução social na promoção do imobilismo e, frequentemente, do caciquismo nas suas expressões mais perigosas e/ou descaradas. (Tal fenómeno não deve ser confundido, contudo, com o calculismo político, social e económico puro e duro. Este, sendo igualmente estúpido, é sobretudo maldoso. São conhecidos os casos de figurões, figurinhas e figurantes que enjeitam e perseguem todos quantos ameacem a sua sede de protagonismo e de poder. Esses – sem qualquer bairrismo – não hesitam prejudicar as suas terras e os seus conterrâneos, se vislumbrarem nessa atitude benefícios para si e para a sua pandilha ou prejuízos para adversários que, quantas vezes, não passam de moinhos de vento, tão reais quanto os que atacavam D. Quixote de la Mancha…)
         Exemplos contrários também existem. Há habitantes de aldeias, de vilas, de cidades e de países que vão dando bordoada na qualidade dos seus naturais, mesmo que seja notória e reconhecida fora de portas. Sobretudo quando esses conterrâneos vêm das camadas desfavorecidas, pois ameaçam a pirâmide social… Não hesitam, contudo, em bajular quem venha de fora. Mesmo que se trate de um burlão ou de um vigarista, ou tão-só de um chico-esperto que habilmente manipula a miopia local, quantas vezes confundida com a hospitalidade.
         Por estas e por outras é que as vacas empeçam umas nas outras – diria um bom pastor alentejano. Ou seja, por estas e por outras é que Portugal e muitas das suas localidades chegaram à beleza com se apresentam no nosso desgraçado tempo.
         Moral da crónica: nem forasteiros nem indígenas. Para nada nos deve interessar o bilhete de identidade de uma cidadã ou de um cidadão, desde que mostre verticalidade, qualidade e competência. Igual desprezo devemos votar à naturalidade de quem se apresenta ou demonstra medíocre ou incapaz. Prezemos quanto de bom nasça nas nossas terras, mas com o mesmo amor acarinhemos os frutos saborosos vindos do resto do mundo. Foi Fernando Pessoa quem aconselhou um forte amor ao nosso quintal, não por ser nosso nem por ser quintal, mas por existir com qualidade no universo.
         Com Marco Aurélio, defendo que “pouco importa viver aqui ou ali se em toda a parte tivermos a ideia que este mundo é uma cidade”. Ninguém vive plenamente sem raízes e sem uma profunda religação ao espaço que ocupa no mundo e à sua memória integral (positiva ou negativa). Mas não deixo de concordar com Pascal: “Não é do espaço que eu devo esperar a minha dignidade, mas do acerto do meu pensamento. (...) pelo espaço, o universo abarca-me e submerge-me como um ponto. Pelo pensamento, abarco-o eu.

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