Ilustração de Luís Afonso. |
NA TERRA DO CONTO DO VIGÁRIO
“Portugal é uma
plutocracia financeira de espécie asinina. É, como todos os países modernos,
[…] uma oligarquia de simuladores. Mas é uma oligarquia de simuladores
provincianos, pouco industriados na própria histeria postiça. Ninguém já engana
ninguém – o que é tristíssimo – na terra natal do Conto do Vigário. Não temos
senão os vigaristas de praça como prova de qualquer sobrevivência das
qualidades de intrujice da nação. Ora um país sem grandes intrujões é um país
perdido, porque a civilização, em qualquer dos seus níveis, é essencialmente a
organização da artificialidade, isto é, da intrujice. ‘Quem não intruja não
come’”.
Não, estas palavras – como é bom de ver – não são
minhas. Não me importaria de tê-las escrito – porque com elas concordo –, mas
não me pertencem senão enquanto leitor. Apesar de ter colegas na sala de
professores da minha escola e muitos compatriotas meus que, do alto da sua
inteligência, põem no caixote do lixo todas as doutrinas e opiniões que não
tenham sido estruturadas por estrelas vivas e decadentes, continuo a
orgulhar-me de quanto me foi dado ler ao longo da vida. Quem escreveu as
palavras que transcrevi chamou-se Fernando António Nogueira Pessoa, corria o
ano de 1925 – e só agora vieram a lume, conhecendo a luz da edição (saberá o Diabo
porquê).
Nesse mesmo texto, entrevista inventada que regista as
opiniões de um dos seus heterónimos mais incompreendidos e, por isso mesmo,
mais afamados (Álvaro de Campos), o autor de Mensagem diz verdades tão importantes quanto estas: “A massa do país nunca importa. Julga alguém
que o ‘povo’ faz revoluções? […] A maioria é essencialmente espectadora. […] O
eleitor não escolhe o que quer; escolhe entre isto e aquilo que lhe dão, o que
é diferente. Tudo é oligárquico na vida das sociedades. […]” E acrescenta:
“Não há correntes proletárias, […] não há
radicalismo em parte nenhuma. Tudo isso é o avesso da plutocracia financeira, e
é provavelmente dirigido e financiado por ela. Não há nenhum movimento radical
que não seja movido, em última causa, pelo Frankfurter Bund, ou por qualquer
outro organismo derivado da Internacional Financeira […]”.
Não será necessário recordar que “plutocracia” é o governo dos ricos e dos usurários e que a “oligarquia” é o poder dos poucos que
detêm influência sobre a maioria que não tem nem capital nem voz.
Frequentemente – como acontece em tantos lugares e países nos nossos dias – uma
e outra juntam-se, refinam-se, transformando-se numa “cleptocracia”: o governo dos ladrões. Mas adiante. Com toda a sua
ironia e sarcasmo, Pessoa chega a escrever ao Demo, sugerindo-lhe medidas de
saneamento social:
“É preciso criar
abismos, para a humanidade que os não sabe saltar se engolfar neles para
sempre. § Criar todos os prazeres, os mais artificiais possível, os mais
estúpidos possível, para que a chama atraia e queime. § O problema da
sobrepovoação, o problema da sobreprodução eliminam-se criando-se focos de
eliminação humana (por meio de todos os vícios), criando focos de inércia
humana (por meio de todas as seduções). Fazer suicidas, eis a grande solução
sociológica. […] É nosso dever de sociólogos untar o chão, ainda que seja com
lágrimas, para que escorreguem nele os que dançam. […] Depois, dos recantos das
províncias […] os fortes surgem e a civilização continua. […] a Realidade é um bocado
de sol simples, um quintal herdado e a certeza de ser um indivíduo.”
Quem tiver ouvidos para ouvir, que oiça! Não são
necessárias explicações adicionais, nem é preciso “fazer um desenho” para explicar o que Pessoa disse e quis dizer. Termino
com um excerto de “Ultimatum”,
assinado pelo mesmo autor em plena Primeira Guerra Mundial: “A Europa tem sede de que se crie, tem fome
de Futuro! § […] Quer o Político que construa conscientemente os destinos
inconscientes do seu Povo! § Quer o Poeta que busque a Imortalidade
ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para os
produtos farmacêuticos! § Quer o General que combata pelo Triunfo Construtivo,
não pela vitória em que apenas se derrotam os outros.”
Repito:
quem tiver ouvidos para ouvir, que oiça! E não se deixe levar pelo ruído
sedutor que está por todo lado, a começar pelas nossas casas, onde entra pela
televisão e pela internet.
Ruy Ventura
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