sexta-feira, 2 de novembro de 2012


Ilustração de Luís Afonso.


NA TERRA DO CONTO DO VIGÁRIO


Portugal é uma plutocracia financeira de espécie asinina. É, como todos os países modernos, […] uma oligarquia de simuladores. Mas é uma oligarquia de simuladores provincianos, pouco industriados na própria histeria postiça. Ninguém já engana ninguém – o que é tristíssimo – na terra natal do Conto do Vigário. Não temos senão os vigaristas de praça como prova de qualquer sobrevivência das qualidades de intrujice da nação. Ora um país sem grandes intrujões é um país perdido, porque a civilização, em qualquer dos seus níveis, é essencialmente a organização da artificialidade, isto é, da intrujice. ‘Quem não intruja não come’”.
Não, estas palavras – como é bom de ver – não são minhas. Não me importaria de tê-las escrito – porque com elas concordo –, mas não me pertencem senão enquanto leitor. Apesar de ter colegas na sala de professores da minha escola e muitos compatriotas meus que, do alto da sua inteligência, põem no caixote do lixo todas as doutrinas e opiniões que não tenham sido estruturadas por estrelas vivas e decadentes, continuo a orgulhar-me de quanto me foi dado ler ao longo da vida. Quem escreveu as palavras que transcrevi chamou-se Fernando António Nogueira Pessoa, corria o ano de 1925 – e só agora vieram a lume, conhecendo a luz da edição (saberá o Diabo porquê).
Nesse mesmo texto, entrevista inventada que regista as opiniões de um dos seus heterónimos mais incompreendidos e, por isso mesmo, mais afamados (Álvaro de Campos), o autor de Mensagem diz verdades tão importantes quanto estas: “A massa do país nunca importa. Julga alguém que o ‘povo’ faz revoluções? […] A maioria é essencialmente espectadora. […] O eleitor não escolhe o que quer; escolhe entre isto e aquilo que lhe dão, o que é diferente. Tudo é oligárquico na vida das sociedades. […]” E acrescenta: “Não há correntes proletárias, […] não há radicalismo em parte nenhuma. Tudo isso é o avesso da plutocracia financeira, e é provavelmente dirigido e financiado por ela. Não há nenhum movimento radical que não seja movido, em última causa, pelo Frankfurter Bund, ou por qualquer outro organismo derivado da Internacional Financeira […]”.
Não será necessário recordar que “plutocracia” é o governo dos ricos e dos usurários e que a “oligarquia” é o poder dos poucos que detêm influência sobre a maioria que não tem nem capital nem voz. Frequentemente – como acontece em tantos lugares e países nos nossos dias – uma e outra juntam-se, refinam-se, transformando-se numa “cleptocracia”: o governo dos ladrões. Mas adiante. Com toda a sua ironia e sarcasmo, Pessoa chega a escrever ao Demo, sugerindo-lhe medidas de saneamento social:
É preciso criar abismos, para a humanidade que os não sabe saltar se engolfar neles para sempre. § Criar todos os prazeres, os mais artificiais possível, os mais estúpidos possível, para que a chama atraia e queime. § O problema da sobrepovoação, o problema da sobreprodução eliminam-se criando-se focos de eliminação humana (por meio de todos os vícios), criando focos de inércia humana (por meio de todas as seduções). Fazer suicidas, eis a grande solução sociológica. […] É nosso dever de sociólogos untar o chão, ainda que seja com lágrimas, para que escorreguem nele os que dançam. […] Depois, dos recantos das províncias […] os fortes surgem e a civilização continua. […] a Realidade é um bocado de sol simples, um quintal herdado e a certeza de ser um indivíduo.
Quem tiver ouvidos para ouvir, que oiça! Não são necessárias explicações adicionais, nem é preciso “fazer um desenho” para explicar o que Pessoa disse e quis dizer. Termino com um excerto de “Ultimatum”, assinado pelo mesmo autor em plena Primeira Guerra Mundial: “A Europa tem sede de que se crie, tem fome de Futuro! § […] Quer o Político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu Povo! § Quer o Poeta que busque a Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para os produtos farmacêuticos! § Quer o General que combata pelo Triunfo Construtivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros.
         Repito: quem tiver ouvidos para ouvir, que oiça! E não se deixe levar pelo ruído sedutor que está por todo lado, a começar pelas nossas casas, onde entra pela televisão e pela internet.

Ruy Ventura

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