UM MAU ESCRITOR TALENTOSO
Ao ver, há poucas semanas,
um texto de José Saramago no enunciado da prova final de Língua Portuguesa de
6º ano, recordei um saboroso e muito vertical artigo do filósofo e poeta Paulo
Tunhas sobre um ensaio de João Pedro George em torno dos livros de Margarida
Rebelo Pinto (p. 43 do nº 14 da revista Atlântico). A dada
altura, afirma (e com razão, a meu ver):
“[...] Cheguei à conclusão que Saramago é um mau
escritor talentoso, uma espécie vulgar. Palavroso, moralista, sem ponta de
ironia. Uma opinião, apesar de tudo, ligeiramente melhor do que aquela para a
qual, na minha ignorância, eu tendia naturalmente. Leva-se suficientemente a
sério para não se entediar a meio da escrita dos livros, e isso permite-lhe um
certo élan, naturalmente interdito a espíritos mais voláteis ou simplesmente
mais lúcidos.”
Como a memória tem coisas que
ninguém entende, enquanto lia estas frases recordei uma crónica do crítico e
ensaísta Fernando Venâncio, onde – delicada e ironicamente – punha a nu os
espanholismos desnecessários que enxameiam as obras do romancista, não como
recursos estilísticos, o que seria normal, mas como pés que resvalam para a
poça, como descuidos que um bom revisor nunca deveria permitir.
Sobre o homem-Saramago reencontrei
ainda um artigo de José do Carmo Francisco intitulado: “Será José Saramago
um fotógrafo de Estaline? (Crónica para os olhos tristes de Maria Belmira)”,
vindo a lume no nº 29 de suplemento Fanal do jornal O
Distrito de Portalegre (22/11/2002):
“[...] O mesmo José Saramago
que um dia recebeu um enormíssimo ramo de flores numa homenagem promovida por
uma Câmara Municipal no Alentejo e não quis voltar para Lisboa sem primeiro
passar pelo Lavre para entregar o ramo à tua mãe para que o destino final
daquelas flores fosse a campa do teu irmão João, foi o mesmo que resolveu
apagar o nome do teu pai, da tua mãe, da tua irmã e de várias muitas outras
pessoas da primeira página do livro Levantado do Chão. E isto mesmo depois de ter
assegurado por escrito e por extenso – Sem eles não teria sido escrito este livro.
[...] [Este texto] é no fundo
um texto de descoberta, de revolta e de repúdio por uma situação de morte civil
só comparável à acção dos fotógrafos de Estaline que faziam desaparecer das
fotografias várias pessoas inconvenientes e que, só anos depois se viria a
saber, não deveriam ter estado ao lado do ‘grande líder’. [...]
[...] [Isto] para ir lembrar
o ano de 1976 quando tinhas apenas quinze anos de idade e um escritor quase
desconhecido entrou pela porta da casa dos teus pais para escrever um livro (Levantado do Chão) e para, muitos anos
depois, de modo totalmente inesperado e (para mim) injusto, vir fechar a
primeira página desse livro a quem lhe tinha aberto as portas da sua casa e do
seu coração.”
A pouco e pouco o pano vai caindo.
E, não fossem influências de várias ordem – que nada têm que ver com a arte e a
literatura, mas com manobras relacionadas com dinheiro e com jogos políticos e
pessoais –, mais cairia ainda… Há cada vez mais homens e mulheres que concordam
com as palavras do poeta polaco C. Milosz (galardoado justamente com o prémio
Nobel). No momento em que Saramago recebia a distinção sueca, não teve papas na
língua e quebrou o unanimismo acrítico, afirmando que o autor de Memorial
do Convento não passava de “um escritor de segunda ordem”. Fosse o grande escritor polaco português e
chamar-lhe-ia, talvez, com Paulo Tunhas, “um mau escritor talentoso”. Eu
encontraria outros adjectivos, mas aqueles que se apresentam são suficientes
para qualificar quem viveu e quem escreveu naquele ser humano.
Ser famoso, como se deveria
saber, é bem diferente de ser importante. E não basta receber o prémio que mais
dinheiro oferece para se ser um escritor, um artista, inovador e um ser humano
exemplar. Como diz um velho provérbio, nem tudo o que luz é oiro – e às vezes
nem prata é.
Ruy Ventura
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